Em meados do ano de 1986 ganhei um livro cujo autor me era
desconhecido, Thomas Hardy. Foi um presente de aniversário dado pelo colega de profissão e grande amigo. Obviamente que se tratava de uma obra prima.
A leitura do livro me marcou profundamente. Não sei como o exemplar não se perdera junto com tantos outros durante as inúmeras mudanças de casas, apartamentos e cidades.
No ano passado, 2018, quis ler o livro novamente. Enquanto psiquiatra e eterna estudante da psicanálise, havia levantado uma
hipótese diagnóstica do personagem e queria sustenta-la com a releitura do
romance. Encontrei o livro amarelado, com forte cheiro de pó,
folhas soltas, capa arrancada. Mas inteiro. Talvez ele fosse a própria
encarnação de seu personagem.
As anotações feitas durante a primeira leitura me
proporcionaram mais uma viagem. Agora para dentro de mim. Embrenhei numa Inglaterra do século XIX acompanhada de Judas e seus sonhos. Um menino
abandonado, escravizado pelo único parente vivo, uma tia velha e doente, que lhe cobrava preços altos
pela falsa caridade em sustentá-lo. Mas a obstinação de Judas pela leitura e pelo conhecimento lhe
fizeram procurar um mestre das letras. Assim os sonhos de Judas criam asas. E a desventura de
uma criança ganha sua sina.
Além das belas descrições, feitas pelo autor, dos caminhos percorridos pelo
interior da Inglaterra, o que mais me impressionou em Judas, o Obscuro, foram as
descrições dos caminhos percorridos pelo interior de si mesmo. Ele encontrará
outras tantas “tias” pelos caminhos. Mas sua conduta ética não o abalará mesmo diante
das inúmeras artimanhas que a vida irá lhe preparar. Ele acreditava na verdade e na
bondade das pessoas.
Na nota preliminar, assinada apenas pelo tradutor Octavio de Faria, lemos que: “Desconhecido,
incompreendido, enganado, só poderá responder aos golpes da vida com a pureza
do seu gesto, tantas vezes repetido, de desvendar inutilmente aos olhos de todos
o seu coração de homem. Os que o rodeiam viram então a face, porque suas
feridas ferem a eles próprios.”
Pois bem, a recente releitura veio corroborar com minha
hipótese diagnóstica do caso clínico de Judas.
E esse personagem tão marcante me trouxe de volta outro
menino. Este outro de carne e osso.
Estava de plantão na urgência psiquiátrica quando me coube o atendimento de um jovem. Ao ler seu prontuário, mesmo antes do atendimento, reconheci sua história. Nosso paciente não tinha mais que vinte e cinco anos. Apresentava a face edematosa, com hematomas e
ferimentos recentes por todo o corpo. Dissera que não conseguia parar de beber e que vinha
bebendo mais de dois litros de pinga por dia. Nos bares e nas ruas era
espancado por colegas e supostos desafetos. Seu olhar estava vazio. Não havia nele
nenhum sinal de vida senão um corpo morto a carregar. Por outro lado havia nele
uma enorme doçura. Respondia às perguntas com delicadeza e respeito. Sem ódio
ou ira pelos seus algozes. Havia apenas resignação. Naquela hora segurei minhas
lágrimas que escorreram para dentro do meu coração.
Lembrei que o havia atendido há poucos anos noutro serviço de
urgência psiquiátrica com o mesmo quadro clínico.
Era mais jovem e sem tantos estragos pelo corpo. Jamais poderia esquecer um
caso tão singular e grave.
Neste último atendimento chamei a mãe, ainda muito jovem,
que me disse o que eu já sabia. Também lembrou que eu o havia atendido e
informou que fizera como havia orientado na época uma vez que não estava
indicada a internação. Naquela época, o menino precisava de tratamentos psiquiátrico e
psicológico permanentes, entretanto junto da família. A mãe também deveria procurar ajuda. Tratava-se
de um grave e raro quadro psiquiátrico. Mas naquele segundo atendimento minha
conduta fora outra.
Apesar do prognóstico sombrio, pedi à mãe que ficasse com o
filho por uns dias em “observação” naquela unidade de urgência até que ele se
desintoxicasse da bebida alcoólica e a enfermagem cuidasse dos ferimentos. Ou
seja, fizemos o necessário para aquela situação tão desumana. Enquanto isto
outros profissionais fariam contatos com a rede de saúde mental de sua
cidade para a continuidade do tratamento após a alta hospitalar.
Nunca mais o vi. Porém, o meu jovem paciente e Judas, jamais
sairão de dentro de mim.
SOBRE O AUTOR DO LIVRO: Thomas Hardy nasceu em 2 de julho de 1840, no condado de Dorset e morreu em 1928. estudou arquitetura porém dedicou toda a sua vida à literatura.
"Seguindo o mesmo critério de excelência, ninguém negará que, na Inglaterra, Thomas Hardy pertence a uma categoria absolutamente ímpar, junto com Dickens, Meredith, Galsworthy, Lawrence e alguns poucos outros."(O.F.)
Funil, 07/10/2019 dia de N. Sra do Rosário
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