sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Conto: Fui numa festa esta noite


A pequena cidade estava em polvorosa. Aquela festa santa era aguardada o ano inteiro e pensada desde o final da festa do ano anterior. Povoada por  toda a gente do lugar. Minha ansiedade e eu estávamos a postos. Olhos, boca, braços, ouvidos. Era preciso antecipar os fatos para que nada saísse fora do esperado.

Tia Nini comandava tudo na casa paroquial. A louça branca de porcelana iria passear pelas mesas rodeadas de padres. Os motoristas comeriam noutra mesa também cheia de deliciosos pratos e sucos das frutas do imenso quintal. Talvez esta fosse ornada com as imensas bacias esmaltadas e pintadas de flores. 

Meus pensamentos vagueiam perdidos entre pessoas por todos os lados e de todos os tempos. 

De manhã a missa. À tarde a procissão. À noite rodas de conversas. Rodas de violões. Vozes ecoando pelas montanhas e pelos tempos. A voz mais bela e potente ainda é da Maria Helena do Hely. Será que os dois violeiros são seus filhos?

Eu continuava perdida. Levantava a cabeça entre a multidão procurando... Nem sei o quê. Vi Tia Nini e seus mandos dentro de mim. Um sorriso farto ou uma palavra dura poderiam sair dela. Imprevisível. Mas sempre presente. Não deixava espaço vazio. Tia Nini costurava, cozinhava, fazia doces, comandava as quitandeiras, colocava flores pela casa. Para mim Tia Nini era uma artista. Tudo girava em torno dela, assim podia-se pensar. Mas tudo tinha um fim. Prover a casa paroquial do silêncio necessário para que o padre, seu irmão, pudesse ler o breviário no sossego de seu quarto. Prover a casa paroquial da assepsia santa. Ali só o perfume das flores; ali só o cheiro do suco do limão galego. O padre bebia em jejum, todas as manhãs, um copo d'água com o perfume do limão. O pezinho de limão galego era visto da janela da cozinha. Eu ficava namorando aquele  pequena árvore, sempre verdinha; nem ousava chegar perto. Nossas limonadas eram feitas com o feioso limão rosa. Não poderíamos falar que era limão capeta. Meu tio padre era bravo que só ele.

-"Será que eles já saíram de lá? Será que pedi minha tia para que eles pudessem dormir na casa paroquial? Acho que eles deveriam trazer travesseiros e cobertores."  Era meu desespero e eu associados à minha desorientação. 

Meus amigos, Tonhão e Gilca, FdS e Rita, Flávia com Benício e Mirela, Ângelica e Lurdinha estão vindo de Belo Horizonte. Uns virão no Jeep - 1957 - recém pintado de azul. Outros virão no Captur da minha bela enteada. Com certeza estão trazendo colchões.

Olhei para cima e vi minha Tia Nini na janela do segundo andar da casa paroquial. Só então lembrei que ela me havia reservado os quartos escuros e de terra batida debaixo da casa. Ótimo. Eles ficam perto dos banheiros e da adega do padre. 

Eles já devem estar chegando. 

Que Nossa Senhora do Rosário abençoe todos os fiéis daqui e de lá. 

Mesmo no burburinho das pessoas na Praça Capitão Vilela escuto o som.

Eu estava no meio da minha gente de Brás Pires. 

A buzina rouca do Jeep me acorda no meio da madrugada. Viro para o outro lado da cama e continuo a dormir.

03/02/2023


Fotografia: agradecimento a Laison, proprietário  do Jeep, da cidade de Mário Campos (M.G.) 


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