domingo, 27 de abril de 2025

Crônica: Elas e eu.

                                     



Elas nunca me chamaram atenção. Talvez porque não tivesse tempo para percebê-las ou, quem sabe,  vivia num mundo paralelo onde elas não existiam. Entretanto em minhas muitas lembranças elas povoam de forma abundante.

Não sei quando comecei a ter um olhar diferenciado para elas. Ou será que foram elas a me dar atenção assim como  roupas e calçados? Não sou eu a escolher o que comprar. São elas, as roupas, ou eles, os calçados, a me comprarem.

Agora isso tem mudado. 

Ou mudei eu?

Um dia, convidada por uma vizinha amiga, fomos a uma flora. Enquanto ela escolhia suas orquídeas, caminhei entre os canteiros das variadas qualidades de flores. De repente fui atraída por um perfume jamais sentido.

- Moço, de onde vem esse perfume por aqui? Perguntei

Voltei para casa com um enorme vaso de pequeninas flores em tons rosa e lilás. Camará. Agora, quando abro minha janela pela manhã, meus olhos são convocados a olharem as florezinhas espalhadas no canteiro bem perto de mim.

Depois vieram as “da moda”. As melindrosas  que não gostam de vento, não gostam de mudar de lugar, não gostam de sol, mas que florescem magnificamente. As orquídeas.

Hoje dei uma topada com brincos-de-princesa no jardim da casa daquela minha vizinha. Lembrei que me presenteei com um vaso delas para dependurar na minha casa quando fiz quarenta anos. Penso que depois disso adormeci para as cores e os perfumes delas. Foi um tempo para eu hibernar e acordar nova de novo.

Hoje observei algumas borboletas voando no meu quintal. Observei também que os beija-flores sumiram daqui desde que foi preciso fazer a poda dos hibiscos ao longo da cerca. Para substituí-los fui orientada a plantar camarões que também atraem beija-flores. Mas eles não voltaram. Por onde andarão?

Há cerca de dois meses recebi as visitas de meu filho, meu neto e minha nora, uma elegante e sofisticada mulher. Resolvi florir minha casa, recém-construída com todo seu apoio nos detalhes finais, trazendo beleza, praticidade e rusticidade, tudo do jeito que eu queria. Então fui até a flora onde um vaso, logo na entrada, convocou meu olhar.

-Moço, que flor é essa? Perguntei

O vaso de pequeninas flores lilases foi, também, colocado na entrada da minha casa me fazendo lembrar da Dani a todo instante. Amestista é o nome delas.

Vivo numa região cujos moradores originários amam as flores. Nas minhas caminhadas morro acima e morro abaixo me distraio fotografando os inúmeros coloridos das flores espalhadas pelas cercas, pelos jardins, pelos caminhos afora.

Acho que, agora, me dei olhos para contemplá-las.

Funil, Mário Campos, 27/04/2025





camarás






                     


camarões


               
                             Rosa do deserto

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Crônica: III ENE

 

"Caminhando e cantando e seguindo a canção..."


Era uma manhã bonita, dessas que guardam promessas no ar. Era 3 de junho de 1977.

Acordamos cedo — não por vontade, mas por necessidade. A pequena lá de casa, nossa filhota de oito meses, já havia esvaziado a última mamadeira à meia-noite e, às seis, estava de olhos brilhando, pronta para viver mais um dia. Nós, ainda meio sonâmbulos, nos equilibrávamos entre mamadeiras, café e expectativas.

Tínhamos um compromisso. E não era qualquer um.

No dia seguinte, aconteceria o III Encontro Nacional dos Estudantes — o famoso III ENE — um projeto que vinha sendo gestado havia mais de um ano, entre debates, esperanças e riscos calculados.

Éramos jovens, estudantes universitários, e acreditávamos em revoluções.

Participávamos ativamente do movimento estudantil, e o III ENE era mais que um evento — era um gesto de coragem contra o silêncio forçado.

Queríamos reconstruir a UNE*, colocada na ilegalidade desde o golpe de 64, e devolver-lhe o corpo e a voz.

Nós dois estudávamos na FAFICH(**), na rua Carangola, no bairro Santo Antônio.

Um reduto vivo, múltiplo.

Tinha gente do teatro, da música, os fãs de Bob Marley com seu fumacê, e nós, revolucionários de fé.

Ali, conheci Teuda Bara do Grupo Galpão, músicos, poetas, gente que incendiava ideias com arte.

O governo militar já havia deixado claro: o encontro estava proibido, em qualquer canto do país.

Mas a juventude, quando junta, tem uma coragem teimosa.

Já tínhamos perdido amigos para prisões, torturas, exílios.

E as universidades, sucateadas, formavam estudantes para um país que não reconhecíamos como nosso.

Restava-nos lutar. E estávamos dispostos.

O encontro seria em Belo Horizonte, no Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina da UFMG.

Lá, planejava-se a assembleia geral que selaria a refundação da UNE.

Mas como ir a um evento proibido, levando uma bebê no colo?

Dividimos as tarefas: eu iria na vigília da véspera, ele no dia seguinte.

Tudo combinado, saí com o coração apertado e o cheiro da bebe ainda na blusa, lá fui eu.

Ao chegar ao DA Medicina, a notícia era preocupante: a repressão já se movia.

As estradas de acesso à cidade estavam cercadas.

Nos ônibus, jovens eram retirados à força, presos por parecerem... estudantes. Simples assim. E, claro, houve muitos enganos.

Ali no diretório, começamos uma assembleia de emergência.

Era preciso decidir: o que fazer frente ao cerco?

Foi quando soubemos que já estávamos cercados.

E que, do lado de fora, muitos lutavam por nós, enfrentando cães, cacetetes, balas de borracha e o ardor do gás lacrimogêneo.

As negociações começaram. O reitor falava com nossos representantes, que tentavam diálogo com os comandantes da repressão.

Éramos 400. E, depois de horas de tensão, veio um suposto acordo.

Esperaram anoitecer.

E foi no escuro que ouvimos: botas marchando, cães latindo, escudos se chocando.

Um som metálico, grave, que gelava a espinha.

Parecia guerra. Mas não havia armas do nosso lado — só cadernos, panfletos, ideias.

Estávamos ali por liberdade. Pela anistia. Pelo fim da ditadura.

Naquela noite, a polícia invadiu o campus da saúde.

Ordenaram: saiam ou serão retirados à força.

Saímos. Em grupos de cinco e de braços dados, queriam que fosse com as mãos na cabeça, não permitimos.

Passamos por um corredor polonês de fardas e fuzis.

Nos colocaram em ônibus e nos levaram à Gameleira.

Ali, fomos fichados.

“Piano” — como chamavam o processo de tirar nossas digitais.

Fotos de frente e de lado, segurando plaquinha com idade e número.

Classificaram-nos: alta, média ou baixa periculosidade.

Na luta política brasileira, virei “classificação”.

Passei uma noite ali. No dia seguinte, fui liberada.

Meu coração corria mais que meus pés: precisava ver minha filha.

E a encontrei, feliz e sorridente, na casa da minha irmã.

Ela não fazia ideia do que se passava. Mas já carregava no sangue o peso leve da resistência.

O tempo passou.
As lutas mudaram de rosto, mas não de essência.
E um dia, diante da surpresa geral, nossa filha soltou sua primeira frase:

-Baixo tadura!

Sorri.
A semente estava plantada.
A luta continua!

Autoria: Neuza Lima, 24/04/2025

(*) União nacional dos Estudantes
(**) FAFICH Facukdade de Filosofia e ciências Humanas / Universidade federal de Minas Gerais

Foto:de Euler Cássia/  Acervo Jornal Hoje em Dia 
Saída de estudantes abraçados da escola de Medicina da UFMG, durante o III ENE (Encontro Nacional de Estudantes). em 1977. 


P.S. Tenho o prazer  em compartilhar com vocês esta crônica da minha queria amiga e colega Neuza Lima, escritora, cronista, e participante, junto comigo, da Oficina de Escrita Criativa ministrada pelo poeta, escritor, professor e atleticano, Ronald Claver, organizada  pela OAP/UFMG

Biografia: Neuza Lima (Neuzinha, para os íntimos), vive em Belo Horizonte desde a década de 70.
Socióloga, mãe, avó, amiga, "miitante", parceira... 
Trabalhou como professora e também como técnica em políticas públicas na PBH.
"Agora aposentada tenho tempo até para contar história. Antes, ele é que me tinha" diz ela.



segunda-feira, 21 de abril de 2025

“Primeira Epístola de Joaquim José da Silva Xavier – O Tiradentes - aos ladrões ricos”

                                       




Meus caros irmãos,

Em comunhão com os ideais libertários e humanísticos dos Inconfidentes em Minas Gerais, digo-lhes que o dia de hoje é menos para celebrarmos a paz do que para denunciarmos a vilania dos inescrupulosos, as mentiras estampadas nos jornais e o avanço da amoralidade dos homens de não tão boas vontades.

É preciso comunicar ao mundo que o avesso do diálogo está voltando aos palcos, que o avesso das ciências está atraindo multidões e que o ódio, mais uma vez, está dominando o pensamento e as ações dos homens.

Faz-se urgente gritar ao mundo que os vários “Tiradentes” espalhados pelo planeta têm sido insuficientes para contrapor as ideias dos infelizes que se julgam acima das leis e da ética.

Quero lembrar a todos que nosso país, nossa tão abençoada América do Sul, num passado bem recente, vivenciou os horrores das dominações dos tiranos, dos sugadores da Terra-mãe e dos assassinos de seus povos.

Que fique bem claro que não aceitaremos mais filhos sem mães ou mães sem filhos, que não aceitaremos que a vida de nenhuma criança seja tomada por bombas ceifadoras dos povos.

Anuncio a estes anticristos que usam de suas palavras para enganar o povo que faremos de suas vidas um inferno em Terra. E que assim o será.

Que registrem minhas palavras em atas e que façam cumprir as leis àqueles que usurparam as riquezas de nossos países, que assassinaram nossas esperanças e desafiaram nossa gente.

Aiuruoca, 21 de abril de 2025.

          "José Franklin Massena de Dantas Motta"



P.S. E hoje não poderia deixar de lamentar a morte do argentino Jorge Mário Bergoglio que, como verdadeiro cristão, aceitou o nome de Francisco ao se tornar Papa. O Papa que nos trouxe de volta a alegria, a compaixão, o respeito ao meio ambiente, a sabedoria e o amor de São Francisco.

            "José Franklin Massena de Dantas Motta"



Observação: Informo que este texto refere-se ao trabalho proposto na oficina de escrita criativa tendo como referência a obra cujo nome dá título ao meu texto, do escritor sul-mineiro de Aiuruoca , José Dantas Motta, publicada em 1967.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Poema: "Mãe dos Silenciados"

 



Pelas estradas de terra, onde o mundo se silencia,

Eu caminho, de dia e de noite, sob sol ou luar frio.

Levo nas mãos o peso de uma maleta e no peito a fé,

Porque sei que ali, além do horizonte de poeira,

Alguém me espera com os olhos cheios de esperança.


Encontro faces que o tempo esculpiu com paciência infinita,

Guardando histórias que nem o vento ousa levar.

Suas mãos, gastas de lidas e rezas, seguram as minhas,

E naquele toque, sem palavras,

Eu entendo que sou parte de algo maior.


A criança magrinha, olhos brilhantes de gratidão,

Me abraça com força, como se dissesse: "Não me esqueça".

E eu não esqueço.

Guardo no peito cada sorriso puro,

Cada abraço que se faz remédio para mim também.


As noites em claro me ensinaram a orar diferente.

Não peço menos trabalho, peço mais força.

Porque enquanto o mundo dorme, eu estou acordada,

Pensando no choro abafado de um paciente ao lado,

Na mãe que não desgruda da beira da cama.


Chuva, lama, frio cortante.

Eu e meu companheiro no meio do nada, sem farol que alcance.

Mas Deus abre caminho onde não há estrada,

E ali, no meio do escuro,

O chamado de socorro se transforma em missão.



Não nego que meu coração já se apertou muitas vezes.

Na pressa de salvar o mundo, às vezes não salvo a mim mesma.

Minha filha espera por mim, e eu sei.

Sei do tempo que lhe devo, do colo que ficou vazio,

Mas espero que ela entenda que meu amor também é caminho.


E quantas vezes a lágrima veio escondida,

Por ver que minhas mãos não eram suficientes,

Que o tempo, às vezes, anda mais rápido do que eu.

Mas Deus me deu olhos de ver além,

E é nesse além que repouso minha confiança.


E Ele também me mostra milagres.

Vi olhos fechados se abrirem de novo.

Vi quem perdeu o fôlego, de repente, respirar.

Vi o sorriso voltar ao rosto cansado,

E nesses instantes, eu sou apenas gratidão.


Cada paciente é um livro aberto,

Páginas que leio com o coração atento.

Histórias de perdas, amores, medos e coragem,

E eu, sem perceber, me torno personagem,

Porque cada uma dessas histórias também me escreve.


Sou ponte entre o esquecimento e o cuidado,

Entre a solidão e o toque humano.

E mesmo quando penso que nada mais posso fazer,

Um par de olhos me olha e diz: "Obrigado, doutora".

E esse "obrigado" me refaz inteira.


Carrego comigo as vozes que o mundo calou,

Os olhares que ninguém notou.

Sou ouvida no silêncio, vista na escuridão,

Porque não há dor que se esconda de um coração atento,

E eu estou lá, mesmo quando ninguém mais está.


Não sei se o mundo lembrará de mim um dia,

Mas sei que, lá no interior de cada paciente,

Ficou um pedaço meu.

E, dentro de mim, levo cada um deles também.

Porque ser médica não é só profissão,

É costurar o amor no silêncio das madrugadas,

E ouvir, ao longe, a voz de Deus dizendo:

“Vai, eu estou contigo.”


 Autora: Dra Márcia MFV (Médica na UPA da cidade de Mário Campos)

Fotografias: arquivo pessoal de Dra Márcia. (Caminhos por onde percorri enquanto médica atuante na Saúde Pública)

                                                                          

  


                                                
               
Dra Márcia e eu quando lhe presenteei com meu livro "Em nome da mãe"


Mas quem é dra Márcia M. F. Valadão? 

Ela mesmo é quem responde conforme abaixo:

"Ao longo do meu caminho, aprendi que mundos inteiros se revelam nas entrelinhas da vida — nos gestos contidos, nos silêncios que gritam, nas meias palavras, nas marcas do tempo gravadas no rosto e nas mãos. Meu olhar repousa sobre essas sutilezas com reverência, como quem reconhece ali a presença do sagrado. É daquilo que muitos não veem que extraio sentido, beleza e verdade. E ao transformar essas percepções em palavras, busco tocar outras almas com a mesma delicadeza com que a vida me toca."


terça-feira, 1 de abril de 2025

Poema: Nós



Ando com saudades

daquele bando de jovens

sedentos de conhecimento

e saberes.

Ainda não entendíamos que

a sabedoria tão procurada

estaria tão só

dentro de nós.

30/03/2025



Fotografia: Igreja N.Sra da Piedade, distrito de Piedade do Paraopeba, Brumadinho, M.G.