Meu interesse por Nova Zelândia vem se dando ao longo dos anos, ora através de conversas escutadas como o fato de uma conhecida jovem, ainda nos anos noventa, ir ajudar a filha com seu primeiro bebê, uma vez que a mesma havia escolhido aquele país para viver. Ficava me perguntando como uma adolescente fora sozinha para um país tão distante e de tão difícil acesso? Ora meu interesse por aquele país também se dava através de postagens das mais belas paisagens reconhecidas por autoridades fotográficas de todo o mundo.
Nestes mesmos anos noventa, assisti ao premiadíssimo filme “O Piano”. Ver aquela ilha com suas montanhas geladas costeiras, com seus povos Maōri foi uma fantástica descoberta. Eu queria saber mais sobre aquele país insular. Comecei a procurar filmes ambientados na Nova Zelândia mesmo com meu parco tempo para ser cinéfila com filhos pequenos e muito trabalho. Mas meu lazer eram os filmes e, preferencialmente, de países e povos distantes.
No início dos anos dois mil me encantei com outro filme também belíssimo, também ganhador de vários prêmios, inclusive de atriz revelação, e também filmado nas praias da Nova Zelândia. "Encantadora de Baleias" era o nome do filme cuja presença dos povos Maōri aumentou minha curiosidade. Aqueles povos com suas tatuagens e seus costumes me chamaram a atenção . O que eu jamais poderia imaginar é que viria a conhecê-los tão de perto.
Aotearoa é o nome que os Maōri - povos polinésios das ilhas Cook - deram ao arquipélago tão logo avistaram as montanhas geladas com nuvens brancas cobrindo toda a região. “Terra da longa nuvem branca” é o significado de Aotearoa e hoje é um dos nomes oficiais da ilha juntamente com Nova Zelândia. Não se sabe ao certo em que época esses povos aportaram na ilha. Eram grandes guerreiros lutando por territórios menos inóspitos para suas sobrevivências. Dos preparativos para as suas lutas surgiu a dança Haka, como forma de paixão e intimidação dos guerreiros para com outros guerreiros, atualmente, apresentada com orgulho em eventos culturais pelo mundo afora.
Dani, minha nora, já tem bastante conhecimento dos povos Maōri e foi ela quem me contou muito sobre eles e suas tradições.
Aramã, amigo do meu filho, sabendo do meu interesse em conhecer mais de perto a cultura daqueles povos e, atualmente, trabalhando num Marae (“espaço” na língua dos povos Maōri) conseguiu que eu “fosse aceita” numa “cerimônia de boas vindas” restrita aos seus povos e que se dá na pequenina casa de oração. Conversávamos bastante sobre diversos assuntos. Aramã é um grande intelectual e muito estudioso. Um destes assuntos girava em torno do seu trabalho junto aos Maōri. Foi ele quem me explicou sobre a mistura das religiões, dizendo que, devido ao fato deles terem também suas divindades e guardiões, semelhantes às religiões cristãs, com seus mártires e santos, houve uma junção destas últimas pelos povos quando da chegada do colonizadores ingleses no século XIX. Atualmente essas "religiões” vivem harmoniosamente.
Voltando à minha visita devo dizer que, assim que entrei no Marae, me chamou atenção a beleza e a grandiosidade do local. Mais tarde Aramã me falaria da arquitetura daqueles imensos espaços projetados como o corpo de uma baleia e cada espaço sendo pensado como um órgão dela. "A casa de orações é o coração da baleia" disse-me ele.
Logo que cheguei fui apresentada a uma trabalhadora que me ofereceu um café. Daí fui sendo abraçada por várias outras trabalhadoras do local.
Naquele dia estavam sendo esperados cinco prisioneiros para que fosse apresentada a eles uma proposta de “reinserção social” cujo resultado do projeto já vinha sendo observado pelo departamento de correções com outros sujeitos infratores. Ali também estavam trabalhadores de empresas terceirizadas junto ao estado para acompanharem a proposta. Foi então que, entre essas pessoas, estava Lu, uma gaúcha que eu já havia conhecido e, de quem, já havia gostado.
Chegou a hora da cerimônia de boas vindas, a que chamam de Pōwhiri – no idioma deles não há a letra F que é substituída por “wh” com seu mesmo som. Todos calados caminhamos em direção à “igrejinha” sob um forte sol branco e frio. De um lado os “kaumātua”, pessoas mais velhas e de grande sabedoria que conduzem a cerimônia. Atrás destes estavam os trabalhadores do Marae. Do outro lado ficaram os poucos convidados, os cinco presidiários, alguns trabalhadores do presídio, assistentes sociais e eu.
O coordenador, a quem fui apresentada, iniciou as orações em Te reo - idioma Maōri – e, logo depois, repetidas em inglês. O silêncio era total. Pareceu-me que ele falava com o coração. Eu olhava com curiosidade para aquelas pessoas com suas inúmeras tatuagens pelo rosto e pelo corpo. Já havia notado a bela tatuagem no rosto do coordenador a quem havia sido apresentada. Havia uma inexplicável serenidade ao redor. Neste momento muitas vozes dentro de mim evocavam minha vida ali. Debulhei em lágrimas. Saudades das filhas que ficaram no Brasil. Saudades antecipadas do meu neto que ficaria naquele país. Saudades de mim. Uma enxurrada de lágrimas lavou meu rosto, banhou meu coração e me refez em calmaria.
Chegada a hora das saudações. A fileira dos "kaumātua” esperava que cada convidado fosse até eles e, então, encostava seus narizes nos nossos narizes e suas testas nas nossas testas. Parecia que eu estava dentro de uma cena de filme. Depois também fui abraçada por alguns deles como nas saudações ocidentais.
Aprendi que suas tatuagens têm registros de suas vidas, de seus ancestrais e de suas posições hierárquicas na tribo. Os homens têm suas tatuagens no rosto, nádegas e coxas. As tatuagens no rosto indicam superioridade uma vez que a cabeça é considerada a parte mais sagrada do corpo.
A seguir caminhamos de volta ao centro da baleia onde um delicioso breakfast nos esperava junto à cozinha. O coordenador expos o projeto para os homens apenados, me apresentou ao grupo e agradeceu minha visita. Sentei numa mesa onde havia apenas um homem bastante envelhecido, com cabelos e barba crescidos e pude perceber que se tratava de um dos prisioneiros em busca de ressocialização. Cumprimentei-o com um leve sorriso como se o pedisse licença para sentar ali. A seguir uma colega de trabalho do Aramã, a quem já havia sido apresentada, aproximou com um belo sorriso e sentou-se ao nosso lado.
Terminadas as falas, fui até ao coordenador, agradeci a ele ter aceitado minha participação na cerimônia de boas vindas e o pedi para fazer algumas fotos daquele espaço e do nosso encontro e assim o fiz após sua autorização.
Voltei para casa inebriada pelo Pōwhiri e ainda mais desejosa de saber sobre aqueles guerreiros enormes, tatuados por todo o corpo, que dançam como se estivessem debochando dos adversários ao mostrar-lhes as línguas com olhos arregalados e com gestos intimidatórios.
Decidi que ainda hei de voltar em Aotearoa, brincar muito com meu neto, passear com ele pelos parques, conhecer outras cidades e, quem sabe, ser submetida a um Tohunga (tatuador) e um fazer uma Tā moko (tatuagem Maōri).
Assim quero e espero.
20/12/2023
Observações:
Deem um zoom na primeira foto e vejam a tatuagem na face do coordenador.
Caso façam algum comentário não esqueçam de colocar de se identificarem.
Agradecimentos:
À Dani por tudo que me ensinou sobre os povos Maōri e sobre a Nova Zelândia.
Ao Aramã, pai da belíssima menina Amora, pela disponibilidade e gentileza em me levar a tão sagrada cerimônia e me ensinar tanto sonbre tantas coisas.
Guardião da casa de oração do Marae
Lu e eu
Porta de entrada da Casa de oração
Uma das coordenadoras e eu
Encantada, Rivelli.
ResponderExcluirEncantada. Te agradeço por esse saber.
ResponderExcluirQue viagem mágica, Rivelli! Amei. Bjos. Rogeria Kalil
ResponderExcluirAdorei a crônica, deu até vontade de conhecer os povos Maōri e conhecer melhor a cultura deles🤍
ResponderExcluirQue bacana! Diferente! Gostoso ler essa crônica.
ResponderExcluirMuitíssimo bacana, Rivelli! Que natureza e a cultura encantadoras que você nos presenteia. Parabéns! Abraços. (Cássio - Brumadinho).
ResponderExcluirLindo! E a danadinha ainda da uma aula pra gente!
ResponderExcluirQue delícia de ler. Adorei.Fiquei bem animada em conhecer mais essa cultura. Bem interessante sobre as tatuagens. Achei o maximo a do coordenador, uma mandala. Gratidão, Carmelita
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