quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Crônica: Minha caixinha de remédios

                              

Primeiro veio o anti-hipertensivo. Com um nome grande e difícil de falar, Olmesartana medoxomila. Lá está ele, branquinho e insolente. Depois veio outro com nome tão difícil quanto o primeiro. Um comprimido para abaixar níveis altos de gordura no sangue, a tão conhecida nossa, rosuvastatina cálcica. A seguir, com muita relutância, entrou na minha caixinha uma cápsula branca para dores articulares. Dores insuportáveis nas cadeiras, ou quadril como dizem os médicos. Dores nas tais bursite trocantérica e pata de ganso. Dores aqui e acolá. Milagre! Ele aliviou todas estas dores que vieram com os anos longos da minha vida.

Faz-se necessário apontar que esses são os ocupantes permanentes da minha caixinha de remédios. Existem mais, esses temporários e indesejados, que não entram lá. Estes são para outros fins que aqui não cabe citar nem nomes nem fins.

Mas não são das dores e nem das alterações na fisiologia do meu corpo que quero falar nessas minhas escritas. Aqui quero falar do meu relacionamento amigável e, até mesmo, incógnito com esse pedacinho de material plástico, vedado, vendido nas farmácias e que tanto tem conversado comigo e acompanhado meus pensamentos.

Tem sido raro me esquecer de tomar esses remédios como muitas vezes tenho me esquecido de outros afazeres. Com certeza este fato se deve a esse relacionamento diário, amigável e de cumplicidade. Toda manhã, após meu café preto, lá vou eu abrir minha caixinha e tirar dela, como ouro em pó prensado, meus compridos. Junto deles, diariamente, vêm cenas como dos últimos meses de vida da minha avó materna, na cidadezinha mineira onde nasci. Meninas e meninos não tinham licença para adentrar naquele quarto isolado da imensa casa onde ela morava. Um provável câncer de intestino, que naqueles idos de 1968, não tinha tratamento. Entretanto o calor humano dado pelos familiares e toda a comunidade ao redor, certamente superaria quaisquer intervenções em apartamentos de luxo nos hospitais de paredes geladas. E foi a primeira vez que usei um vestido para o luto. Eu estava com dez anos.

Outras vezes, ao tomar meus remédios, vem o orgulho do meu pai dizendo, dos altos de seus noventa anos, que não tomava nenhum remédio e que sua pressão e seu coração eram de jovens. “Assim dizem os médicos”.

Minha caixinha de remédios tem oito pequeninos compartimentos. Um para cada dia da semana e um extra para reservas caso seja necessário. Ali tenho uma metade de um comprimido para ansiedade. Não sei porque ele continua lá. Será que não sei mesmo?

Quando esvazio todos os compartimentos é hora de reabastecê-los. É nesse momento que vejo o tanto que voam as semanas em dias tão longos. Tenho feito pequenos estoques dos meus remédios. Não gosto de esgotá-los. Nem gosto de ver compartimentos vazios.

Devo confessar que nunca gostei de tomar remédios. Evito-os. Sei de seus efeitos terapêuticos assim como sei também de seus efeitos indesejáveis. Outro motivo de evita-los sou eu saber o porquê preciso deles. Mais ainda em se tratando daqueles permanentes. Eles me lembram, diariamente, que estou envelhecendo. Já sinto saudades da vida.

Mas uma cena vem à minha memória diariamente ao me aproximar da minha caixinha de remédios. Eram os muitos recipientes que ficavam no armário da cozinha da minha casa, na prateleira à altura dos nossos olhos. Junto ficava também o estojo de aço com seringa e agulha para aplicar injeções. Meu pai era chamado para aplicar injeções nos doentes da minha rua além das injeções necessárias em família. Mas havia também sacolinhas brancas, de plástico, quadradas, onde meu pai organizava os vários medicamentos da minha mãe. Era ele quem lhe dava, ou lembrava-lhe daqueles tantos comprimidos.

Minha caixinha de remédios tem muito mais que apenas comprimidos dentro dela. Minha caixinha de remédios tem saudades, tem memórias, tem afetos e tem muita vida pulsando dentro dela.

01/01/2025

Observação: Caso queiram fazer algum comentário não esqueçam de de se identificarem. 

11 comentários:

  1. A vida vai-se sustendo de esperanças, de sonhos, de esperas, do cotidiano. De comprimidos e mais comprimidos. Bela crônica!

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  2. É necessário algum remédio feito em laboratório pra acalmar as nossas dores físicas . Eu prefiro as folha e raízes do mato . Um abraço pra vc e sua família minha amiga querida e fica com Deus.

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  3. A literatura é um mágico remédio vindo de você.

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  4. Que crônica linda de Ano Novo! Obrigada! Feliz 2025

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  5. É uma crônica de muito valor,relatos
    do quotidiano em família .


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  6. Que crônica mais criativa, que nos leva a imaginar cenas familiares cotidianas. Parabéns!

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  7. Existe uma caixinha de remédio ,que diferente de outras, é redonda , oval, sei lá . De sua cabeça saem pílulas que além de alimentar e alegrar nossos dias, curam nossas almas. (Nada é por acaso, né Doutora Rivelli). Um abraço.

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    1. Que pena que não sei de quem é o comentário. Muito obrigada pelo carinho.

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  8. A crônica de Rivelli revela uma delicada relação entre objetos cotidianos e a carga simbólica que eles carregam. A caixinha, que à primeira vista poderia ser apenas um recipiente para medicamentos, transforma-se em um repositório de memórias, sentimentos e histórias. Ao mencionar os medicamentos permanentes e temporários, Rivelli nos leva a refletir sobre a permanência e a transitoriedade em nossas vidas – não só no sentido literal das substâncias que ingerimos, mas também das emoções e das experiências que deixamos entrar em nossas "caixinhas" pessoais.
    A lembrança da avó e dos últimos dias de sua vida confere uma dimensão nostálgica e melancólica ao texto, enquanto a crítica ao meio comprimido para ansiedade, aparentemente inútil, adiciona um toque de auto questionamento. Essa autocrítica mostra como pequenas coisas podem desencadear uma busca mais profunda por autoconhecimento: será que não sabemos mesmo, ou apenas escolhemos ignorar o que já sabemos sobre nós?
    Ao lembrar do pai e do estojo com a seringa, a autora evoca o cuidado e a conexão humana em um tempo em que tratamentos simples eram carregados de significado, marcando a infância com lições de generosidade e comunidade. Essa relação entre passado e presente é o que dá vida à caixinha – ela não é apenas um objeto funcional, mas um símbolo de vida pulsante, de memórias que nos constituem.
    Rivelli nos faz refletir sobre a forma como pequenos objetos podem conter universos inteiros, lembrando-nos de que a vida é feita tanto dos comprimidos que nos sustentam quanto das lembranças que nos moldam.

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    1. Muito obrigada minha mais recente colega médica descoberta numa UPA em Mário Campos, num momento delicado meu. Mas o comentário superou a crônica em sua gentileza e sabedoria. Muito obrigada Dra Márcoa Mourão

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  9. Ah, que lindo! Até os remédios tem suas historias/mistérios... lembrando o poeta "Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas. "Federico Garcia Lorca

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