terça-feira, 18 de novembro de 2014

DORES E FLORES



                       

           


Mesmo perrengada  com algumas dores, coisas de mulher, cumpri quase todos meus compromissos do dia. Deixei para a tarde a melhor tarefa, qual seja passar na minha casinha no caminho de volta a Brumadinho.

Ao sair do asfalto já senti o cheiro da terra úmida devido ao patrolamento da estrada facilitando assim o acesso.
Como sempre acontece, estava sozinha, mas bem acompanhada pelos pensamentos de viajante. Estes jamais faltam. São fiéis companheiros.

O telhado do meu chalé está sendo trocado uma vez que fora mal feito e sempre trouxera problemas com as chuvas. Agora está quase pronto e ficou ainda mais charmoso.

Duquesa e Neguinho correram para a costumeira festiva recepção. Eles sempre esperam por alguma guloseima diferente da ração diária. Não tem sido possível, pois tenho ido lá apenas para as conversas com o pedreiro. Entretanto sempre me sobra tempo para um carinho e uma palavra.  Os pássaros continuam chegando e aumentando em quantidade e diversidade. Outro dia tive a visita de um pássaro Preto. Diariamente tenho visto tico-tico Rei e Trinca Ferro além dos meus queridos canários da terra.

Mas, hoje, a obrigação me fez ir até Brumadinho. Aproveitei  e fui ao supermercado. Muitas lembranças  andaram comigo pelos corredores estreitos e arranjados, sem planejamento. Acabei me perdendo lá dentro. Acho que era isto mesmo que eu queria.
Onde fica o corredor dos vinhos? Eu me perguntava e logo o vi lá. Lindo, repleto dos meus vinhos. E os antibióticos? Então nada de vinho por agora. Paciência. Logo poderei degustar um deles. Ficará ainda mais saboroso.

Logo que cheguei à cidade vi uma vaga perto do local onde deveria resolver uma primeira questão junto a um banco. Olhei para o outro lado da rua e deparei com aquela casa onde trabalhei por alguns anos. A janela de madeira do consultório estava semi aberta. Então me vi lá dentro atendendo todos aqueles pacientes que tanto me ensinaram na minha profissão e na minha vida. Era um trabalho muito árduo, mas toda a equipe se esmerava para suavizá-lo e para que tivéssemos sucessos.

Por alguns instantes parei na calçada. Quase entrei. Não entrei. O encanto poderia se quebrar.

Rapidamente voltei para a minha realidade e lá fui eu ainda cheia de saudades.

As lágrimas me desobedeceram. Também, quem mandou ser tão chorona?

Ali, muito mais que um trabalho, deu-se a efetivação a nível municipal de um projeto nacional para atendimentos às pessoas portadoras de sofrimentos mentais fora dos hospitais psiquiátricos. E a cidade já se destacava e brilhava em tal serviço. Era assim que deveria ter sido desde sempre. Mas o que vimos e o que  a história nos conta é que o louco sempre vivera excluído, segregado e mal tratado pela sociedade, pela medicina e pelos governantes.

Mas ali a loucura apresentava um outro estatuto. Ela era livre e andava livre pelas ruas. E nós, trabalhadores, no meio dela e com ela. Às vezes era impossível saber quem eram os profissionais e quem eram os  ditos "loucos". E loucos somos todos nós.

Jamais esquecerei do empenho de uma profissional de belas artes que trabalhou conosco por algum tempo. Ela sempre inventava modas para sair com nossos pacientes, além das belíssimas produções artísticas de cada um. Agendou uma visita à Casa Fiat de Cultura para uma rara exposição de Rodin e Marc Chagall no ano da França no Brasil.

Conseguiu transporte com a prefeitura, lanches e, além da entrada franqueada para todos, profissionais e pacientes, ainda teriam um mediador para acompanhá-los pelos caminhos das esculturas e dos quadros, apresentando-os às obras. 

Meu trabalho quase nunca me permitia estar em outras atividades com eles. Eu sempre tinha uma agenda cheia com casos agudos e ou graves para acolher e atender. Entretanto, algumas vezes, ousei fazer bolos e biscoitos com alguns deles, então, tivemos deliciosos cafés da tarde. 

Na  semana seguinte daquele passeio, perguntei para alguns sobre a exposição e cada qual contou o que viu, a seu modo. Entretanto o que mais me marcou fora o relato da colega que os acompanhara. Minha colega nos contou que Chico das Tampinhas parou diante da escultura do Pensador, de Rodin, e ali ficou alguns minutos como que tomado pela belíssima obra. Contou também acerca da emoção sentida por Leonardo que tremia ao ver as pinturas.

Terminada a apresentação e prontos para a volta, o tal mediador  elogiou todo o grupo pelo interesse, pela discussão durante o percurso e pela gentileza de todos eles. Ele agradeceu pela oportunidade de acompanhá-los.

Bem, já está tarde e tenho que voltar.

Conversas  afinadas, acordos refeitos e despeço daquele lugar e de seus moradores, meus companheiros Duquesa e Neguinho. Afora os galináceos.

Ao sair meu olhar é convocado a ver as primeiras flores daquele  pé de Ipê Rosa que, junto aos outros,  plantei ao chegar ali. Estavam lindas e minhas mãos podiam tocá-las.

Certamente, minhas lembranças e estas flores conspiraram contra minhas dores. Porque elas se foram...


24/ 10/2014

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