sexta-feira, 7 de agosto de 2015

DONA MERCEDES E SEU JARDIM DE ROSAS



  
    Eu morava naquela rua de terra batida com canos de ferro por debaixo mas que, raramente, conduzia a tão esperada água para nossas casas. Ainda bem que tinha a fontinha onde buscávamos os baldes do precioso líquido para o filtro de barro e para a comida. 
  
    Pela manhã íamos para a escola e a tarde era só brincadeiras depois de fazer os deveres de casa para o dia seguinte.

    Nessa época, defronte a minha casa morava um casal que viera do Rio de Janeiro e eu adorava conversar com a Dona Elba só para ouvir aqueles inúmeros xis em todas as palavras, até mesmo naquelas que não estavam no plural mas que tinham os "esses" no meio delas. Eles tinham um casal de filhos. O rapaz era o mais velho e ficara na cidade dele, dizia que ele estava estudando. A mais nova era uma mocinha de um nome tão diferente dos nossos quanto seu jeito de mocinha carioca. Ela andava muito bem vestida. Eu achava muito esquisito eram seus sutiãs. Pareciam dois coadores de café. Eles eram rendados e sempre cor de rosa. Aquilo, me disseram, chamavam-se bojos, mas, para mim seriam sempre coadores de café.

    O marido era de uma elegância e educação que parecia até mesmo um artista a desfilar pela nossa rua de terra. Mas esquisita mesmo era a Dona Mercedes, a mãe de Dona Elba. ao contrário da neta, ela não usava sutiãs e deixava os peitos soltos sob um vestido reto e de tecido fino. Aqueles peitos caídos balançavam tanto que fora apelidada de mamão de corda. Ainda bem que ela era surda e, mesmo que ouvisse, jamais daria atenção aos moleques daquela rua de pobres. Ela estava sempre limpinha e cheirosa. Parecia que saía do banho a toda hora. Com que água eu não sei, mas parecia. 


    Aos poucos Dona Mercedes fora construindo um pequeno jardim na frente de sua casa que era a única da rua que possibilitava tal beleza. O jardim coloriu de rosas e tantas outras flores aquele espaço cuja dona ficava o dia todo a tomar conta dele para que não roubassem suas plantas. Bem antes deles se mudarem para aquela casa, já eram costumes da meninada as várias brincadeiras de vólei, barra bandeira, piques e tantas outras, bem ali entre a tal casa e a minha casa. Ali se davam os encontros para o começar de tantas brincadeiras. 

    Eu e meus muitos irmãos, de vez em quando, atraíamos nossos vizinhos para ouvir os sons dos instrumentos musicais do nosso pai, para encenarmos peças teatrais, para as preparações das festas juninas e os aniversários. Tínhamos grandes pretensões artísticas culturais e, certamente, fizemos histórias naquela rua.

    Mas, voltando para dona Mercedes, devo dizer que ela era muito brava e furava nossas bolas que, por ventura, escapasse dos espinhos das roseiras quando caíam nos seus jardins suspensos da Babilônia. Minha mãe sempre dizia que deveríamos brincar mais para cima, assim evitaríamos tantas bolas rasgadas e perdidas. Mas não. O melhor de tudo era exatamente provocá-la com nossas teimosias e depois lamentar mais uma bola perdida.

    Eu nunca havia conhecido ninguém que fosse de outro estado, só conhecia mineiros. E minha rua era só de mineiros das Minas Gerais e mineiros que trabalhavam no Morro da Mina de onde se extraía o manganês. Dona Mercedes era gaúcha e ouvia dizer que gaúchos eram muito bravos e mandões. Mas sua braveza contrastava com a doçura de sua filha, Dona Elba.

    Um dia, minha vizinha tão brava quanto aquela velha senhora resolveu enfrentá-la. Foi um Deus nos acuda. Fatinha era magrela, corajosa e sem papas na língua. Assim que soube que mais uma bola tinha sido rasgada fora tirar satisfações com a rasgadeira de bolas. As duas falavam e xingavam ao mesmo tempo e nenhuma escutava o que a outra dizia. Minha amiga esbravejava chamando-a de mamão de cordas e bolas. E Dona Mercedes a chamava de moleque de rua e dizia que em sua cidade colocava-se pimentas na boca de gurias assim. Minha mãe escutou a pendenga e foi lá separar as duas ferozes mulheres. Pediu a Fatinha que deixasse Dona Mercedes para lá, que respeitasse suas manias e sua idade. Assim se fez em "respeito a senhora Dona Mariinha", minha mãe, como afirmou a guria já mais calma.


    Dona Mercedes tinha geladeira em sua casa e fazia os chup-chup para vender. E eles eram de todas as cores e nos encantava a todos. Meu irmão, Zé "o Gênio", roubava as pratinhas de centavos de réis da caixinha de moedas antigas do meu pai e comprava os tais chup-chup. E depois ria de suas travessuras. Além de surda ela também enxergava pouco.

   Quando meu pai comprou nossa primeira televisão, preta e branca, foi um alvoroço na rua. À noite iam todos para nossa pequenina sala assistir a novela "Antonio Maria" na TV Tupi e dona Mercedes apaixonou pelo bigode do seu protagonista português. Será que ele, o bigode, lhe fazia lembrar outros bigodes? E eu não perdia um só capítulo da novela "Legião dos Esquecidos" na TV Excelsior com cenas às margens do rio Araguaia, na ilha do Pantanal. E tudo era no mais alto volume para que D Mercedes pudesse escutá-las.

    Certamente foram muitos anos de vizinhança e implicança. E Dona Mercedes, lá no céu deve estar cuidando das rosas dos jardins de São Pedro. Mas aqui na terra ela continuará, eternamente, fazendo parte da história daquela rua de moleques pobres. 



22/05/2015


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