segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

NATAL NA RUA DE CIMA




Em março ou abril de 1962 mudamos para Conselheiro Lafaiete. Meus pais, seus seis filhos e mais um na barriga da minha mãe. Eu faria seis anos em julho.

Assim que nos instalamos fui matriculada no pré-primário do Grupo Escolar "Inconfidência" mas a escola quando percebeu que eu já sabia ler, não me aceitou naquela turma. Tive que esperar fevereiro do ano seguinte. 

Chegamos inicialmente numa linda casa alugada até que a nossa casa de verdade tivesse sido reformada para nos receber. Caprichos do meu pai. Era uma casa à direita, descendo numa grande ladeira. Ela ficava acima do nível da rua e tinha escadas na lateral para entrar nela. Eu nunca tinha visto casas pintadas de alaranjado misturado com vermelho. (*)

Desta casa eu me lembro das descidas até o final do morro para fazer compras no armazém do Sr. Antônio Dutra. Na caderneta. Subíamos aquela rua parando várias vezes para descansar e tomar fôlego. Eu e minha irmã. Cada uma segurando uma alça da sacola com os víveres para toda a família. Onde estariam meus irmãos mais velhos? Quem sabe na escola ou procurando serviços! Nessa época minha mãe tinha adoecido e quase não saia do quarto. Acho que sentiu muito ter deixado os seus para viver perto dos parentes do meu pai.

Logo mudamos para a nossa casa. Ela também era linda e cheirava a tinta nova. Tinha um quarto dentro do outro quarto onde foram alojados todos os seis filhos. Eu também. E outro quarto para meus pais. Uma sala pequenina, uma copa e uma cozinha com um lindo fogão a lenha que ocupava quase todo seu espaço. A porta saia para uma escada até um tanque de cimento sem cobertura para tampar o sol ou a chuva. Um banheiro grande e esquisito. Era tudo  feito de acordo com o querer do meu pai e ele sabia o tudo de uma casa. 

Mas a rua é que fora a grande novidade. Era uma rua novinha. Sem água, sem luz e sem calçamento. Entretanto era uma rua acolhedora e cheia de meninos e meninas das nossas idades. Ela nascia de uma outra rua e esta era cheia das casas grandes, de gente rica e bonita. Eu voltava da escola passeando meus olhos por toda aquela beleza. Chegava em casa com tanta fome que logo esquecia da pequenez da nossa ruazinha. À tarde, após os tantos dos deveres para casa da escola, saíamos para o meio da rua onde era sempre uma festa as brincadeiras. E eu fui me apegando àqueles moradores desconhecidos que logo fariam parte de nossas vidas.

Abaixo da minha casa morava e ainda mora Dona Hilda com suas três filhas e seu filho mais velho que eu quase não via. A mais velha tinha um nome muito diferente daqueles da minha cidade que tudo tinha de ter nome de santas e mártires. Luciana, era esse seu nome. Eu achei aquele nome digno de uma princesa. E ela vivia muito para dentro de si. Uma princesa dentro do seu castelo. Já trabalhava mesmo ainda mocinha. Depois tinha a Aída com os cabelos tão compridos e bem cuidados que eu ficava admirando tanta valença nos cuidados. Mas era a mais nova a mais bela. Parecia a Ceci de José de Alencar com seus cabelos negros e longos e sua pele morena. Sempre fora a menina mais bonita da rua. Causadora de muitos ciúmes. Uma rainha. Depois nascera a quarta filha. Uma boneca dos olhos verdes. O pai delas morrera cedo e todas tiveram que trabalhar ainda muito jovens. 

Logo abaixo de Dona Hilda vinha a casa da Agda. A irmã mais velha andava pela rua sem olhar para ninguém. Dona da rua. A mãe dela a vestia como se fosse uma boneca de louça. Tudo combinando. Sapatos, meias, vestidos engomados, arquinhos na cabeça. Eu nunca havia visto tanta brancura ou tanta cor de rosa, ou tanto vermelho. Agda cresceu rápido. Depois casou. Teve um casal de filhos. E me convidou para amadrinhar a menina e se tornou minha comadre.

Um dia continuarei descendo a minha rua e falarei de outros tantos.

Do outro lado morava Sr. Antônio com seus sete filhos. Todos pareando suas idades com as nossas.

Eram tantos os nossos vizinhos que logo a rua virou uma só família. Viver ali certamente fora uma encomenda dos deuses para mim. Assim eu penso hoje.

E foi chegando nosso primeiro natal naquele novo mundo. A única irmã do meu pai era professora. Tinha um marido rico e moravam na rua  de cima. Aquela mesma rua de onde nascia a minha rua. Ela amava meu pai que lhe havia batizado e por quem tinha muito respeito e adoração. A mãe do meu pai morava com ela. Muito magrinha mas muito dona de suas vontades. 

Deu então deles convidarem nossa família para passar o natal com eles. Minha mãe ficaria responsável por alguns doces e carnes. Será que ela fez a sopa dourada? Era o doce de pão aquele que eu mais gostava. Ou a preferência de meu pai? Aquele doce de aletria que eu não gostava. Não faltariam os doces de figo e dos pêssegos colhidos no quintal da nossa vizinha.

Logo cedo após a noite do nascimento do Menino Jesus acordamos e subimos a nossa rua até sua nascença na rua dos ricos. 

A casa  da minha tia era a casa mais chique e bem arrumada de todas daquela rua. Tudo era novidade. As poltronas cobertas de tecido com estampa de grandes flores vermelhas e verdes sobre um fundo preto. Se hoje fecho os olhos ainda posso ver as flores bem vivas.

Meus tios não nos deixaram sem presentes. E seria sempre assim todos os anos naquela rua. Nesse nosso primeiro Natal na cidade dos meus tios já éramos sete filhos. O mais novo nascera em novembro. Meu tio dividiu com meu pai os presentes que ganhou em seu trabalho. Ele quase não falava e nem era preciso. Seus gestos falavam por ele.

E foi então que eu conheci aquelas bebidas doces, engarrafadas, com sabores estranhos e cores variadas. E que borbulhavam ao sacudirmos o líquido lá dentro. Ganhei uma só para mim. Alaranjada. Era uma garrafinha para cada criança. Aquele sabor ficava na minha boca enquanto exalava um cheiro gasoso. Cada gota era absorvida com o medo de que aquilo acabasse. E não deixei que acabasse. 

Terminado o almoço voltamos para nossa casa na rua nova debaixo daquela. E, logo ao sair da casa da minha Tia, passando defronte o açougue do Sô Adão, eu e minha garrafinha alaranjada como se fosse um troféu, vem lá de dentro uma voz  a dizer:

-"Parece que nunca tomou CRUSH na vida"

Era o feioso do empregado do açougue a debochar daquele meu apego por tão precioso líquido e em tão linda garrafa.

Desde então o sabor de tal bebida permanece na minha boca, o cheiro permanece na minha pele e as lembranças permanecerão a vida toda dentro do meu coração.


(*) Rua Francisco Lobo


OBSERVAÇÃO: esta história é dedicada a todos os moradores do Bairro Museu daqueles tempos. Em especial aos moradores da Rua Dom Silvério e Rua Mário Zebral, em Conselheiro Lafaiete (MG)

21/12/2015





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