terça-feira, 8 de dezembro de 2015

RIO DOCE MEU DOCE RIO XOPOTÓ



   O tempo ainda era do encanto. Vivíamos no meu castelo das cores branca amarelada pelo tempo e do azul mais lindo que eu via pelos arredores. A rua de terra vermelha ajudava a colorir minha casa e minha infância. Mais parecia uma casinha que saia dos presépios para ser plantada ali, onde acabava a rua e começava a estrada. Ou quem quiser que seja o inverso.

   Pelas histórias dos meus pais eu conclui que chegara ali por volta dos meus dois anos.Tenho lembranças visuais prazerosas da casa lá em cima do morro onde eu nasci e vivi até a mudança para o meu castelo.

  Nele havia três pequeninhos quartos. Eu e minha irmã mais velha do que eu apenas um ano, dormíamos num deles. E meus dois irmãos mais velhos que nós dormiam noutro quarto. Ainda nem me dava conta da existência de uma outra irmã mais velha que morava com uma tia na cidade grande. Eu tinha então entre dois e cinco anos. Meu quarto tinha uma janela que não dava para a rua. Ela abria para os fundos. E, para mim, este fora o detalhe mais importante daquela meu mundo. Eu viajava através daquela espaço aéreo que me trazia o sol nascente, a geada dos tempos do frio, o perfume das flores das laranjeiras no outono, o doce das mangas no verão e o verde das bananeiras espalhadas por todo o grande terreiro em torno do meu castelo.

  Entretanto o que eu mais gostava e por onde eu realizava minhas grandes viagens era no Rio Xopotó que deslizava manso e majestoso traçando o limite daquele meu terreiro cheio de tesouros. Mas lá não tínhamos autorização para irmos sozinhas. Além do risco de encontrarmos as temíveis cascavéis pelos caminhos, havia o perigo de escorregarmos na beira e morrermos afogadas. E eu respeitava aquelas águas como se fossem sagradas. E elas eram santas.

  Algumas tardes meu pai nos levava até  às margens para pescar lambaris, piabinhas, quem sabe uma grande traíra ou bagres em tempos de chuva. Enquanto esperávamos os peixes beliscarem as minhocas, minha mãe providenciava o angu daquele fubá de moinho d'água. Então nosso jantar se transformava em verdadeiros banquetes reais.

   Às vezes eu perdia o sono a noite e ficava imaginando os desbravadores taubateanos daquela região subindo o rio em grandes embarcações, com belas mulheres a bordo e suas roupas imperiais. Alguns iam ficando pelos caminhos a demarcarem os territórios encontrados e conquistados.

    Meu pai dizia que o Rio Xopotó e o Rio Piranga nasciam juntos na Serra da Mantiqueira como dois irmãos e que eram separados apenas por pequenos obstáculos da natureza.

  Hoje eu sei que o Rio Xopotó cujo nome significa rio do cipó amarelo, nasce na cidade de Desterro do Melo, a 1.200 metros de altitude e o Rio Piranga nasce na cidade de Ressaquinha, às margens da BR 040, também a 1220 m de altitude. Portanto nascem bem próximos. Andam paralelos como dizia meu pai, que aproveitava para trazer conceitos de matemática, mas logo lá embaixo eles se encontravam de novo. 

   Eu sempre quis conhecer a tal cidade de Calambau, bem perto da minha cidade, onde os rios se juntam e formam um só rio. E eu ficava imaginando dois irmãos separados a vida inteira e se reencontrando após cada qual percorrer sua vida. Até chorava por aqueles  rios - irmãos. Mas me orgulhava porque eles se abraçavam para, mais abaixo, formar o grande Rio Doce que iria atravessar todo o leste de Minas e beijar o mar lá na cidade de Linhares, no estado do Espírito Santo. 

   "Um dia vou levar todos vocês lá para verem esse encontro", dizia orgulhoso meu pai. E eu cresci sonhando ver esse beijo de águas doces com as águas salgadas do mar.

   Nas nossas longas viagens de Lafaiete a Brás Pires, minha linda terrinha natal, ou dela para lá, escutava com muita atenção as histórias do meu pai sobre aqueles rios e outros tantos que ele conhecia, como o Rio Pará, o Rio Paraopeba - " o maior afluente do Rio São Francisco da margem direita"- o Rio Grande lá pras bandas de Lavras. Falava também do Ribeirão do Carmo, também afluente do Rio Doce, que cortava toda a cidade de Mariana onde ele nos levava para ver nosso terrível tio Felício Rivelli.
  
  Mas eu gostava mesmo era de ver as curvas do rio Piranga, irmão do meu Rio Xopotó que margeava a estrada por longos quilômetros. Ficávamos discutindo qual era o mais comprido, o mais volumoso, o mais largo, qual tinha as cores mais bonitas e as margens mais ricas. Obviamente que todos nós escolhíamos o nosso Xopotó. Então nosso pai tentava ser imparcial e dizia que um era mais que o outro naquele ou nesse quesito. Entretanto sabíamos que ele fazia aquilo para nos ensinar a diferença entre a razão e o coração. Porque ele também amava o nosso rio.  

   Um dia nosso Tio Padre, a quem todos nós chamávamos de Padrinho, pois ele não só era o padre a dar o sagrado sacramento do batismo como era também o padrinho de grande número dos sobrinhos e conterrâneos, nos levou lá na Fazenda da minha querida Tia Pitita. Como sempre, ele colocou muitos sobrinhos e sobrinhas dentro de seu Jeep 1957, novinho, e foi Deus quem nos guiou porque ele só sabia beliscar um e culpar o outro e, no final, todos choravam como ele queria e ria de alegria. Mas meu tio conhecia e sabia de tudo e ele nos levou por caminhos dentro da mata até um descampado aonde eu avistei uma das paisagens mais belas da minha infância.
   
   Meus olhos ainda enchem de emoção quando me vem a lembrança daquele rio largo, de águas cristalinas e pequenas pedras no fundo. Podíamos atravessá-lo até a margem do outro lado. Mas éramos pequenos demais para tamanha ousadia. Brincamos na beirada dele jogando água naqueles que estivessem mais próximos. E nos fartamos do Rio Xopotó ali bem mais próximo de sua nascente. Logo após ele atravessar a cidade de Cipotânea, em plena Serra da Mantiqueira.

   Mas os tempos das águas cristalinas se foram. Foram-se também os tempos da infância na roça e do viver entrelaçado com a natureza.     

   Hoje, após muitas centenas de quilômetros de andanças com curvas, remansos e histórias, mataram de uma só vez, os meus dois irmãos rios. E Bento Rodrigues, Mariana, Minas e o Brasil choraram comigo esta tragédia. O mundo político pediu severas punições aos assassinos daquelas águas sagradas e doces.

  Agora já não há mais lágrimas para chorar a morte do nosso Rio Doce. A lama do capitalismo borrou meus olhos que já vinham ofuscados pelas poeiras das montanhas sendo destruídas e levadas embora em vagões feitos do seu próprio aço. Filhos ingratos. 

   O beijo doce de suas águas com o sal do mar jamais será de amor.

   E nossas Minas Gerais, morrem a cada dia por causa de seu "coração de ouro num peito de ferro".

  Todavia rezo a nossa Mãe Terra para que dê muita vida e força ao meu Rio Xopotó para que ele reencontre seu irmão, o Rio Piranga e juntos ressuscitem o nosso Rio Doce. E que o beijo senão de amor seja de compaixão.

   

01/12/2015-  Uma homenagem a todos aqueles, que assim como eu, ainda choram pela tragédia de Mariana.

5 comentários:

  1. Então existe pelo ao menos dois rios Xopotó, se existe esse que nasce em Desterro de Melo, também existi um rio chamado Xopotó que nasce na serra de São Geraldo, também na Zona da Mata mineira.

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Xopot%C3%B3

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  2. Obrigada pela leitura e pela informação. Não sabia do irmão Rio Xopotó na Serra de são Geraldo. Vou procurar pois fiquei curiosa. Abraços

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  3. Belas lembranças, bela crônica! Deu-me saudades do Rio e da região que nem conheço, mas conheço Piranga e Senhora de Oliveira.

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  4. que belo conto, muito bom ler suas histórias que se misturam com a natureza e termina em Rio e nem sempre em risos, pois nosso Rio Doce já não é o mesmo.

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    1. E é muito bom ler o comentário de uma pessoa que tanto admiro. Obrigada Neuza

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