quinta-feira, 12 de maio de 2016

Crônica: Deixar-se perder em BH

Um cansaço sem explicações tomou conta do meu corpo. Suores molharam minha face e meus cabelos esquentaram minha cabeça. Havia tanto o que fazer naquela sexta-feira e acabei me perdendo entre panelas, xícaras, roupas para lavar, documentos a serem decifrados, almoço e uma infinidade de tarefas a serem executadas.

Então decidi escrever. Eram onze horas da manhã. Mas nada me vinha nos pensamentos senão o a fazer. Por esses tempos estávamos às voltas com as descobertas das corrupções no meu país que há muito vem sangrando nossa economia e enriquecendo aqueles mais espertos e inescrupulosos políticos brasileiros. Sempre soubemos que algo deveria estar errado. A distancia existente entre a riqueza das classes políticas e empresariais e a pobreza dos trabalhadores que constroem o pais é uma vergonha nacional. O mundo inteiro nos vem chamando a atenção acerca de tal disparidade social.

A tão falada "lei de Gerson ou seja, levar vantagem em tudo", sempre tem sido uma constante naqueles que acham que o país deve sempre estar a seu dispor.

Bem, eu cansei de pessoas assim. Tô virando o balde. Aprumei o peito e sai de casa. Deveres me convocavam.

Minha filha me deixou no local devido. Próximo ao Mercado Central. Uma carona. Resolvida as questões de cidadania, decido voltar a pé para casa. Ir pelo caminho conhecido ou percorrer outros caminhos? Tomei o trajeto desconhecido e certamente muito mais longo. Sem preocupar em cortar caminhos. Eu precisava andar.

Eis que me encontro nos maravilhosos jardins do entorno da Igreja da Boa viagem, no centro de BH. Sempre tive vontade de conhece-la. Entrei por uma porta lateral. E qual não foi minha surpresa ao encontrá-la cheia de fiéis mulheres, vestidas de branco, com uma fita cruzada vermelha no peito. Era o Apostolado da Oração. Conhecido meu dos tempos do interior. E não parava de chegar mais mulheres. Sexta-feira a tarde. Sentei e observei a arquitetura, os altares, as imagens. Esqueci de identificar a N. Sra de Boa Viagem, padroeira desta capital. Atesto que prefiro as igrejas barrocas de Aleijadinho e Mestre Ataíde de nossas cidades históricas. 

Sai da imensa construção sagrada e vi mais carros com mais tantas mulheres descendo com suas vestimentas de adoração.

Recomecei meu caminho. 

Como eu nunca havia passado por tantos quarteirões antigos e belos desta cidade que tanto amo? 

Rua Alagoas, Rua Sergipe, Rua Pernambuco, Rua Paraíba  e todo o nordeste brasileiro; representado aqui pelo avesso de lá. Aqui é uma área nobre. E perpendiculares a estas temos as ruas dos Inconfidentes, Claudio Manoel, Alvarenga Peixoto e outros a chegarem na emblemática Praça da Liberdade. 

E quem não conhece o traçado de Belo Horizonte se perde nos quarteirões sem ângulos retos. Os construtores da capital foram caprichosos. Um deles, dizem, fora desenhar os quarteirões em losangos para homenagear os docinhos de leite assim cortados em nossas Minas Gerais. Outro fora fazer com que  todas as ruas tivessem nomes dos estados brasileiros paralelas umas às outras e as transversais com nomes de índios. De modo que índio não cruza com índio nem estado com estado. Excetuando neste projeto algumas ruas com nomes de índios que ficaram paralelas aos estados como a rua Paracatu, a rua dos Guaranis e a rua Araguari, portanto estas encontram com outras tribos mineiras. 

No entorno destes quarteirões adocicados, ainda existem belas praças e avenidas e a famosa Avenida do Contorno que, como o próprio nome indica, contorna toda a cidade construída. 

Todo este projeto teria sido pensado a partir de Paris. 

Depois de sempre me perder entre índios, inconfidentes e estados logo que cheguei nessa cidade no inicio dos anos oitenta resolvi estudar o mapa do centro de BH e nunca mais me perdi. Obviamente não me perdi mais dentro da cidade embora continuasse a me perder dentro de mim. Mas nesse dia não queria me localizar e me perdi com propósitos de ver aquilo que jamais olhei em todos esses anos. 

Bem, continuei meus passos e deparei com outras tantas belíssimas construções antigas ao lado de prédios suntuosos e não menos belos. Sempre tive boas noções espaciais. Embora, na cidade de São Paulo eu sempre fico perdida. Mas estou em Belo Horizonte, região dos Funcionários e logo à frente visualizo um desconhecido cruzamento, todo arborizado e uma charmosa avenida. Continuo curiosa para chegar até lá. Constato, rindo sozinha, tratar-se de um cruzamento onde passo diariamente em direção ao meu trabalho. Esquina de Avenida Brasil com rua Bernardo Guimarães. 

Ainda estava muito longe de casa. Pegaria um táxi? Continuaria caminhando? Nem lembrava do meus joelhos adoentados.

Sem me dar respostas, continuei caminhando por outros quarteirões virgens do meu andar e do meu olhar. Passei por uma porta aberta. Entrei.  Era a capela de Santo Antônio do tão clássico colégio do mesmo nome. Lá estava o santo casamenteiro. Duas mulheres ajoelhadas, com as cabeças dobradas sobre o peito. Em penitências? Ou em epifanias ? Fiquei ali na calmaria do lugar sagrado.

Daí a pouco voltei para as ruas tão minhas naquelas horas. Sem perceber estava defronte ao prédio para onde mudei havia pouco tempo. Comprei a contra gosto dois pãezinhos a preço de ouro na padaria ao lado e cheguei em casa. Eu havia andado por quase três horas pelo nordeste brasileiro, por tribos indígenas e pelas construções modernas deste século. 

Acho que fora necessário o caminhar para que eu pudesse arrancar de mim as lembranças dos dois mundos nos quais vivi na minha infância e que nesta manhã se fizeram tão presentes ainda. Minha tia me pedia que eu levasse sua única filha ao catecismo nas manhãs de sábado. Eu ficava de fora uma vez que não tinha roupas adequadas nem a faixa de seda amarela da Cruzada Eucarística. Ainda me lembro daquele tecido branco de algodão canelado. Seria o tal fustão? Era lindo. Acho que de raiva acabei esquecendo o nome dele. Ali era só para os ricos pois era o catecismo da Dona Sofia. Após entregar minha prima à sua mãe eu voltava com minha irmã, minhas amigas e vizinhas para o catecismo da Babá, uma preta velha e pobre.

Lamentavelmente, meio século depois pouca coisa mudou no meu país.

Agora voltando ao Santo Antônio, exigi dele nas minhas orações que desse um jeito logo. E lhe segredei que se as pessoas não mudaram com o tempo e a história do meu país, eu mudei. E mudei muito dentro de mim.


12 de maio de 2016
  

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