quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Noivado




Gilda tinha os cabelos castanhos claros, compridos e lisos. Embora não fossem tão volumosos, brilhavam ao sol e se destacavam no corpo da jovem que parecia estar sempre caminhando apressadamente e com os pensamentos pesando-lhe a alma. Morava na metade daquela rua de famílias menos favorecidas na vida. Ainda na adolescência tivera que trabalhar para ajudar a mãe,viúva, e as irmãs menores.


E fora no serviço que aquele moço aparecera e lhe encantara. Era um jovem comum. Ela deixou caixas de sapatos rolarem pelo chão ao tremerem-lhe as pernas e o coração bater disparado. Nem soube o nome dele. Compara uma bota de borrachas. Fez o carnê para pagar em prestações e se foi.

Pelo menos ela tivera a certeza de que ele voltaria no mês seguinte. Ele voltou. Procurou Gilda com o olhar. E ela respondeu ao olhar com um sorriso e os cabelos brilhantes. Foi selado ali um sim à paixão.

Na terceira vez ele só apareceu no final da tarde. Aproximou-se dela e perguntou-lhe o nome. Convidou-a para um guaraná depois que a loja fechasse. Ela aceitou com o coração quase pulando para fora do peito.

No dia seguinte era uma outra Gilda. Seu desempenho nas vendas superou quaisquer metas que, naquele tempo, poderiam ter sido traçadas. Os cabelos ficaram ainda mais belos. Os olhos brilhavam e falavam de amor.

Charles tinha dezessete anos. Trabalhava como operário numa fábrica de cimento bem perto daquela cidade. Ainda estudava no tempo que lhe sobrava e tinha ideias avançadas sobre os lucros dos patrões às custas de mãos de obra baratas dos jovens pobres.

Gilda não entendia muito daquilo. Só sabia que precisava ajudar a mãe nas contas do final de mês e no pagamento da caderneta do armazém onde compravam os alimentos. Porém se este assunto era-lhe indiferente não o fora para aumentar ainda mais o encantamento pelo jovem. O namoro firmou-se. Charles começou a frequentar a casa da moça dos cabelos compridos e corridos.

Se a lua é dos namorados, não o são as decisões impostas pela vida. Charles se viu obrigado a acompanhar os pais numa difícil e inesperada mudança para São Paulo. A mãe adoentada conseguira tratamento num hospital daquela cidade. Os filhos mais velhos vieram buscá-la. O pai decidiu ir junto e levar todos os outros seis filhos. E Charles deveria ir como a tal mão de obra barata.

As cartas e as declarações de amor não seriam suficientes para manter o namoro ao longe. Assim pensou a jovem que ficara muito entristecida.

Gilda chorou durante quase um ano. Até que soubera que Charles já estava com outra namorada em São Bernado do Campo onde havia se empregado.
Não pensou duas vezes. Linda que era tão logo apareceu um pretendente e ela embarcou no desejo do moço. E logo aceitou o pedido de namoro. Mais por vingança do que por qualquer outro motivo. "Charles que se danasse", dizia ela. O namorado era um belo jovem. Difícil não deixar-se enamorar. Não teve mais notícias de Charles desde que enviara uma carta terminando o compromisso. Nada dissera a ele do que soubera da namorada. Era por demais orgulhosa. Ele que pensasse que era dela a decisão do término do namoro.


Antônio queria casar-se depressa e marcou o noivado para o dia em que Gilda completasse dezoito anos.


Na rua algumas amigas acharam precipitado o noivado. Outras tinham preferência por Charles e falavam que ela deveria esperar mais até ouvir dele, em pessoa, a confirmação de tal namorada. Gilda não deu ouvidos a estas e nem àquelas. Seguiu seu coração traído.

Outubro chegou com o aniversário de Gilda no segundo sábado do mês, dia seguinte ao feriado de N. Sra Aparecida. E ela estava ainda mais radiante.

Entretanto no final da tarde ela recebe uma visita inesperada. Charles. Chega calmo. Fala do trabalho pesado numa metalúrgica no ABC paulista. 

Dois anos haviam de passado. Ele envelhecera muito mais que o tempo cronológico. Dissera do seu amor por ela que continuava cada dia maior. Perguntou o que havia acontecido pois deixou de receber suas cartas desde que mudara de bairro e enviara outra com o endereço novo. A moça entre o desespero e a surpresa, abaixou seu olhar diante das palavras de afeto daquele que ainda tanto amava.

Até hoje, quando Gilda escuta a canção "Eu sei que vou te amar... Por toda a minha vida eu vou te amar" ela brinca que Tom Jobim lhe deve tal poesia.


13/10/2017


*Quadro: Moça com o Brinco de Pérola (Het Meisje met de Parel)
Pintor: Johannes Vermeer
Ano: 1665

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