quarta-feira, 19 de julho de 2023

Crônica: Uma médica quase uma dona de casa


Acordei não tão cedo como nos dias anteriores. Uma rinite alérgica colocou meu nariz a ficar escorrendo e eu a ficar fungando. Ontem deitei com as galinhas. Um cansaço despropositado havia tomado conta do meu corpo. 

(E, agora, a imagem de um espelho quebrado atingiu meu olho esquerdo - Fecho os olhos e a imagem continua. Lembrei do meu oftalmologista do sotaque francês: "Isto é stress!" a me mostrar as figuras de seu livro com as tais imagens. Páro de escrever. Tomo um café forte. Dou um revorteio pela casa. Volto para a tela e a imagem continua toda quebrada. "Oh, my God!" Não consigo continuar.) 

Bem, tentarei contar, detalhadamente, as duas horas entre o meu levantar e agora, nove  trinta horas da manhã e vocês me acompanharão na excelência da minha vida enquanto dona de casa. Então vamos lá.

Ainda de olhos fechados na cama, escuto minha filha na cozinha. 

-"Você já fez café? Tó indo sentar à mesa com você."

Olho para a bancada da pia e ela olha olha prá mim. Com certeza a me pedir para organizá-la. Agora não! Primeiro lá fora antes do sol esquentar. Tomo meu café com bolo de cenoura e já começo o que não havia planejado. Vou dar ração e milho para as galinhas. No meio do caminho, ao me deparar com a vasilha vazia da ração dos cachorros, volto e vou enchê-la. Então vejo a máquina de lavar aberta a me chamar para começar pelas roupas. Ontem já havia juntado as roupas escuras. Não misturo as várias roupas a serem lavadas. Um aprendizado que trouxe da adolescência.  Mas tenho que abrir o registro da água que vem prá cá. Roupas na máquina e vou até o galinheiro. Havia juntado cascas de frutas e hoje vou debastar o pezinho de salsa e de pimenta e jogar para elas. Elas vão adorar. No quartinho onde guardo as rações, deparo com a falta de vasilhas para transportá-las . Volto no meu chalé e busco um copo grande, "Este serve." 

Agora é hora de jogar água nas mudas de frutas. Ontem meu vizinho, grande estudioso das palmeiras brasileiras e frutas orientais, veio borrifar antifúngico na minha muda de tamareira que adquiri dele há um ano. Brinquei com ele que queria provar se tal árvore demora setenta anos para dar a tâmara. Ele orientou colocar NPK  e mais água. Na minha ignorância havia pensado que, em se tratando de uma espécie dos desertos, ela não precisaria de tanta água. Então joguei bastante água na minha bela tamareira.

As mudas da laranjeira, do limoeiro e da mexiriqueira estavam verdinhas e fortes, mas precisando de esterco, de NPK e de fofar a terra para que as raízes respirem.

Quando abaixo para pegar tomatinhos vermelhinhos nascidos ao acaso, para as galinhas, meu olhar é convocado para os tantos de maracujás caídos debaixo da parreira. "Ainda me faltam muitos afazeres, depois apanharei os maracujás azedos", pensei. Ontem meu vizinho  de cinco anos me mostrou os maracujás verdes enormes da minha parreira que ultrapassou a cerca e subiu pela amoreira do quintal dele. Ele me perguntou se eu tinha "um amarelinho" para lhe dar. Claro que eu tinha e logo busquei. Já havia ensinado a ele como saborear aquela fruta tão docinha. Não gosto dos maracujá azedos, só para o suco, embora eles tenham frutificados também na mesma parreira. De vez em quando o perfume das flores invade tudo ao redor. Outras vezes é o perfume da dama-da-noite. Sempre há um aroma em torno da minha casa. Entretanto nenhum deles se compara com o cheiro da terra quando recebe as primeiras chuvas do veranico, em setembro.

"Vixe, esqueci de tomar meus remédios!" Entro em casa e aproveito para beber bastante água. Olho de soslaio para a bancada da pia e vejo, além de tudo fora do lugar, vários pratos e talheres para lavar. Viro rápido para não ver. Volto para o quintal. Tudo muito seco. Decido lavar a garagem e tirar as folhas secas dos pés de ipê que, com os ventos da noite, cairam por aqui. Mais água nas minhas plantas e gramas. Não fico com culpas por gastar a água que vem da mina lá de cima da montanha. Uso esta água abençoada com o devido respeito sabendo que estou fazendo a parte que me cabe de proteção ao meio ambiente. 

Há quase vinte anos comprei um pedacinho de terra no meio do morro numa comunidade de famílias originárias. Hoje percebo que fui forasteira por aqui. Entretanto meus pés já criaram raízes. E, atualmente, tenho trabalhado na defesa desta região contra a instalação de mineradoras que, como bem disse nosso grande ambientalista, escritor e filósofo, Airton Krená, "elas estão comendo a Terra".

Agora subo e vou cuidar das plantas e do canteiro atrás das casa. Tudo muito seco. A última chuva que molhou nosso chão foi no dia trinta e um de maio, há cinquenta dias. Fico pedindo chuvas aos céus. No ano passado contei cento e três dias sem elas. Bem próximo à cerca que divide com o vizinho, do lado dele, há um pé de pera. Sempre aproveito e jogo água nele também.

O cansaço chegou. Entro em casa de costas para a pia. Tomo outro café. Lembro da minha infância, quando minha mãe me chamava  atenção com os cuidados da casa e eu sempre escolhia o tanque. Foi nessa época que criei diversas maneiras de lavar as roupas. Jamais esquecerei o tablete duro e vermelho do sabão com a imagem em alto relevo do Cristo Redentor e a inscrição RIO. Segundo minha mãe, era o melhor sabão que existia. Hoje eu penso que era o sabão que cabia no orçamento apertado da grande família. 

Enquanto digito por aqui, escuto o barulho da máquina torcendo minhas roupas escuras. Então penso que jamais serei uma boa dona de casa, continuarei sendo tão só a dona da casa. Vou lá estender minhas roupas.

  19/07/2023


Fotografias do meu quintal 


1ª floração do meu buganvile




                                     Manhã com brumas


                  Presentes da minha mãe. Panela de pedra onde eram guardadas as carnes de porco na gordura.



 
 Presente do vzinho como cajá-manga, na verdade são seriguelas


 Um bando de jacus visitando por aqui, Só consegui fotografar este.


                                 Flor de maracujá


                                       Maracujá doce



                            Margaridinhas nativas por aqui



6 comentários:

  1. Adorei Rivelli. A bicharada agradece esse amor e esse cuidado.! E nós agradecemos o amor dessa mulher forte! Beijos

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  2. Adorei seu conto,ri de mais sozinha de você comentar sobre a pia cheia de louça para lavar.

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  3. A pia da cozinha... sempre a pia da cozinha!

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  4. vixe "esqueceu" de lavar as louças! Que ótimo maneira de relatar de nosso cotidiano! Com poesia é sempre mais leve!

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  5. A danada da pia da cozinha nunca está vazia. Parece que panelas dão crias. Eu me enrolo toda de manhã com os afazeres do quintal e da lavanderia e a bancada da cozinha me espera. Sei que vou dar um jeito na bicha só depois da soneca da tarde e com ajuda da filha. Rivelli gosto demais de suas escritas. Um abraço.

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