ADORO LAVAR ROUPA
Ainda agora estava pendurando roupas no varal da pequenina área de serviço do meu apartamento e lembrando do final da minha infância e início da adolescência.
- Eu limpo a casa... encero todo sábado e lá vem vocês entrando e saindo com os pés sujos!
Era minha irmã mais velha. Dora, muito senhora de si e de todos nós, os seis irmãos mais novos. Ainda posso sentir o cheiro da cera e de limpeza naqueles dias de sábado. A porta da sala dava para uma área de terra e era inevitável passar por ela para entrar em casa. Eu nem ousava pensar naquilo. Haveria um jeito de não sujar os pés senão eram muitos xingamentos. Como a minha irmã era brava!
Meu irmão, abaixo de Dora, tinha catorze anos e já trabalhava desde os dez. Agora ele limpava uma sapataria e, no final do ano, iria nos presentear com sapatos. O nome dele era Felício, homenagem ao nosso avô. Com seus primeiros e minguados vencimentos ele comprou uma linda bicicleta alaranjada, em várias prestações. Tudo isto pra dizer que aquela Monark deu muita confusão. Dora virava uma onça , quando ele e sua bicicleta adentravam pela casa nas tardes de sábado. Felício era muito obediente e tímido. Ainda vivia brincando com seus carrinhos; logicamente fechado no quarto dos meninos. Dizia que seria motorista quando crescesse.
Tinha o Joãozinho, nome do meu pai. "Era de morte” como dizia minha mãe. Se alguém chorava durante as orações da noite, era ele a beliscar um, fazer careta para outro, e negava de pés juntos que não era ele. Um santo esse meu irmão.
Lia era mais velha que eu um ano. Tivera problemas nas pernas e ficara várias vezes internada num hospital da capital, fazendo operações nos ossos para corrigir o defeito. Acho que, por isto, era a queridinha dos meus pais. Era despachada, alegre e sempre tinha um querer. O trabalho dela era lavar o banheiro todos os dias.
Nossa casa tinha um banheiro que, depois, virou um quarto. Meu pai era muito cuidadoso com os filhos e com a casa. Quando os dois mais novos cresceram, ele transformara, mais uma vez, o novo banheiro em mais um quarto. Fizera uma cozinha nova, grande, e comprara um fogão a gás para minha mãe.
Adoramos a novidade daquele fogão, mas sentíamos saudades do outro, à lenha, vermelhão e muito bem feito.
Éramos sete irmãos. Sempre recebíamos visitas. Parentes do interior que dormiam em nossa casa e, à noite, ouvíamos os casos e as piadas. Aquilo era uma festa.
Bem, eu não me lembro se a escolha para lavar as roupas era minha ou se escolheram por mim. Acho que foi a mandona da Dora. No inicio era pesado e desanimador, mas eu ia criando modos de aperfeiçoamento e muita ciência naquele trabalho do dia a dia.
Estudava pela manhã no colégio estadual. Da minha casa via o prédio grande, majestoso e num verde muito suave. Não havia ruas que ligassem nosso bairro ao colégio, então todos nós tínhamos que dar uma volta enorme pelo centro da cidade até chegar lá.
Voltemos ao tanque, tenho muitas roupas para lavar. Esqueci de dizer que, quase sempre, faltava água nos canos debaixo da terra vermelha.
Tinha a "fontinha" que ficava muito além do despenhadeiro do final da minha rua. Gostava de ir lá. Ficava vendo as lavadeiras “oficiais” nas pedras, esfregando, enxaguando e torcendo todas aquelas roupas. Como era bonito de se ver.
Às vezes elas cantavam enquanto as mãos e os pés ficavam mergulhados n’água corrente e os sons se misturavam com aqueles do esfregar as roupas. Meus pensamentos viajavam naquele som ritmado das lavadeiras. Poderia ficar ali, sentada numa pedra só para ouvir as mulheres naquele canto. Imaginava as roupas limpas em seus donos. De quem seria aquele vestido cor de rosa?
Minha mãe avisava para não demorar; as trilhas eram fechadas e longas. Eu gostava mesmo era de ver a alegria de Dona Joana, minha vizinha. Ela lavava as roupas de seus filhos e de outras famílias. As filhas dela eram minhas amigas. O único filho homem, para alegria de Dona Joana, já era jogador de futebol na Venezuela e tinha o apelido de Pelé.
Minha mãe pagava uma lavadeira para os lençóis, toalhas de mesa e de banho. Eu ficava com roupas de vestir. Não tínhamos muitas roupas, por isto elas deveriam ser lavadas diariamente. Primeiro eu tirava a sujeira grossa das roupas brancas com um tal sabão vermelho e duro. Depois passava uma água para deixá-las sem as tais sujeiras. Nem sempre havia sabão em pó para colocá-las de molho. A bacia era de cobre e eu tinha força para levá-la até um local onde o sol deveria fazer sua parte. Tinha certeza que os raios solares ajudavam a clarear as roupas. O tanque deveria ficar desocupado para a limpeza da casa e da cozinha. Tudo pronto. Ainda não eram seis horas da manhã.
Agora tomava meu café com pão e margarina, ou um pedaço de bolo feito por minha mãe. Lá íamos nós. Eu amava meu colégio. Participava das festas, das gincanas, do vôlei. Era muito estudiosa.
Voltava pra casa e para o almoço quentinho. Naquela hora, o sol era muito forte na cabeça. Gostava de usar um lenço para me proteger e adorava a água molhando o meu corpo também. Antes era minha mãe quem lavava todas as roupas. Ela usava um enorme chapéu de palha e um avental de material plástico amarrado à cintura. Meu pai sempre sorria quando a via vestida daquele jeito. E ela dizia que era o melhor serviço da casa.
Tá na hora de esfregar, enxaguar e torcer as roupas brancas. Vem outra ciência minha. Eu lavava as roupas coloridas nas águas que iam ficando depois da primeira etapa do meu distinto trabalho. Assim aproveitava água e sabão. As roupas brancas eu estendia nos compridos arames, ao sol. As de cor eu colocava debaixo das sombras dos pés de limão e de abacate que ficavam no terreno da vizinha. Era para não desbotá-las. Desta forma elas ficariam sempre novas.
A cada dia eu aperfeiçoava também o estender as roupas no varal, para facilitar o terrível trabalho na hora de passá-las.
Acabado o trabalho, era hora do café. Minha mãe fritava angu que sobrava do almoço ou fazia angu doce com rapadura cujo sabor ainda tenho na boca. Quase nunca sobravam pães do café da manhã. Meu pai sempre comprava a conta dos filhos.
Enquanto saboreava meu café olhava pela janela e via todas as roupas penduradas. Era lindo de se ver. Aproveitava as roupas mais bonitas, pegava carona no vento e viajava pra todo mundo. Ia até o Tejo e voltava nas caravelas com Pedro Álvares Cabral. Voava num Zepelin pelas montanhas de Minas. Ia até Ouro Preto para ver Tiradentes e sua amada Ana, ou para São João Del Rei ver Bárbara Heliodora...
Minhas viagens acabavam quando minha consciência avisava que tinham deveres para o dia seguinte.
Lá ia eu estudar... Fazia tudo rápido porque eu gostava mesmo era dos romances. E eu lia sem parar. Entrava nos pensamentos de Ceci e Peri, de Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, de Ana Terra, do Doidão, e por aí afora. Tentava entender o que se passava na cabeça de cada um deles. Chorava , sorria , sofria, perdia o sono.
- Olha a roupa seca no varal. Já tá ficando de noite.
Era minha mãe.
Caprichosamente eu pegava toda a roupa já seca, dobrava e deixava para a dona do passar. Voltava para meus livros e, cansada de tanto lavar roupas, dormia pensando que se eu não fosse lavadeira haveria de ser mesmo era uma escritora.
Que prazer enorme em ler e reler os contos de Rivelli.É o começo de um sucesso.Valeska.
ResponderExcluirTambém adoro lavar roupas! Vai saber porque...
ResponderExcluirViajei tb pela minha infância recordando minhas irmãs mais velhas com obrigações de cuidar da casa...Alegria pura!!! Grata.
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