terça-feira, 24 de junho de 2014

SINAIS E SINTOMAS DE DESPEDIDA II


                  ULISSES, O RETORNO

Não pensem vocês que a história do Ulisses acabou por ali onde terminei minha última crônica.

Numa manhã de muitos meses depois e de mais um plantão estava eu observando todo o desenrolar daquele início de trabalho. Naquele tempo as portas de algumas unidades ainda ficavam abertas assim como aquela do principal acesso à urgência do hospital.
  
Os pacientes circulavam livremente por ali num ir e vir deles e dos funcionários que se misturavam em rodas de viola, em peladas, em brincadeiras e, obviamente, em tentativas de fugas. Afinal ficar confinado num hospital psiquiátrico não é nada agradável. 

Defronte ao prédio existe uma linda área arborizada com decanos flamboaiãs e belíssimas paineiras. E era à sombra destas árvores que todos transitavam e viviam um pedaço de vida.

Às vezes eu ficava por ali. Papeava com um. Escutava outro e assim aproveitava para fazer minhas observações clínicas.

Voltemos então na citada manhã quando um minguado rapaz se aproximou de mim e perguntou pelo meu nome. À minha resposta ele riu e perguntou:

- "Foi a senhora quem me internou daquela outra vez, não foi?"

Então me lembrei dele. Era Ulisses. Não o homérico, mas nosso mineiro personagem também de mil ardis.

Perguntei o que lhe acontecera desta feita pois me parecia muito bem.

Disse-me que tinha melhorado daquela vez e que voltara para casa. Mas de uns tempos para cá voltara a ficar muito nervoso e o pessoal do CAPS pediu que ele viesse passar uns dias internado. Abriu um belo sorriso e saiu dali.

Dai a pouco volta Ulisses com um copo descartável nas mãos e pequeninas flores dentro. Chega até mim e diz:

-"É para a senhora."
   
E continuou;

-"Sabe aquele dia da minha internação que eu falei que as vozes me mandavam jogar a senhora fora? Eu tava era brincando. Era só para ver a sua cara..."




                      ME DÁ UM CIGARRO...


E, num outro plantão, eu estava por ali junto da equipe de enfermagem na rotineira tarde com o café e rodeada por alguns pacientes em muitas prosas.
  
Entre eles havia um jovem rapaz encostado no balcão que separava o posto de enfermagem do grande corredor em torno. 

Devo esclarecer que o referido balcão tem a pretensa finalidade de separar pacientes e trabalhadores mas, às vezes, esses limites geográfico e humano tornam-se  impossíveis.

Pois bem, o tal rapaz tinha estatura mediana, pele clara e tragava seu cigarro com muito prazer. Naquele tempo também ainda era permitido aos pacientes fumar dentro e fora do hospital. 

Nosso rapaz puxava um trago e levantava a cabeça expelindo a fumaça para cima e acompanhando-a com seu olhar não tão perdido. Estava em pura paz. 

Junto a ele e encostando-se a seu corpo havia uma mulher com seus quarenta anos, mais baixa e também de pele clara. Ela acompanhava todo o ritual do fumante. Até que tomou coragem e pediu-lhe um cigarro. 

Ela não se declinou com a negativa imperiosa do rapaz. Continuou ali, parada e encostada nele. Arriscou pedir novamente e ele, novamente, negou-lhe o tão desejado cigarro. Ela não saiu de perto, parecia se deliciar de estar ali, bem junto dele, calmamente.

Lá pela tantas investidas de pedidos e recusas, o jovem parou, dignou-se a olhar para ela e perguntou:

-"Você é minha mãe?"

O sim veio de imediato.

Ele então retirou vários cigarros do maço no bolso de sua camisa, dirigiu-se a ela e disse-lhe:

-"Então toma mamãe."

E eu continuei meu plantão.



21/06/2014

Um comentário:

  1. Que interessante! Deveria ter me especializado em psiquiatria. Era a primeira opção.

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