PALAS ATENA E
ULISSES
Provavelmente era o ano de 1978 e eu
queria estagiar num Hospital Psiquiátrico. A escolha por tal especialidade já
havia sido feita desde sempre.
Busquei informações; corri atrás e consegui o tal estágio
numa clinica com boas referências. Tratava-se de uma gigantesca construção em
branco, localizada às margens da rodovia e para a qual que eu olhava durante todas as vezes
que passava por ali nas idas e vindas da minha cidade para a faculdade.
A
vegetação em torno, o caminho de terra e suas casinhas na lateral davam um
aspecto de fazenda mineira. Mais um motivo para eu escolher aquele lugar.
Então, consegui o tão sonhado trabalho. Eu ficaria nos
finais de semana, 48 h, duas vezes por mês, observando o trabalho de um
psiquiatra do corpo clínico e faria as anamneses dos recém-internados. Perfeito.
O tempo foi passando e eu aprendendo. Dormia no quarto da
secretária que, nos finais de semana, raramente aparecia por lá. Era uma imensa
suíte, com pés direitos muito altos, com duas portas, uma saia para um corredor interno dando acesso à cozinha e
às alas femininas e outra, lacrada, dando acesso ao pátio interno dos pacientes crônicos mais graves. Às vezes,
pelas frestas desta segunda porta, eu via dezenas de homens alucinados andando
de um lado para outro como sei lá o quê.
Eram seres humanos e suas loucuras "abandonados à própria sorte". Assim era a assistência psiquiátrica do estado brasileiro.
Comecei, depois de algumas semanas, a fazer atendimentos
noturnos supervisionados pelos plantonistas oficiais, caso eu precisasse de
ajuda. E eu precisei e aprendi muito com eles.
E fora numa destas noites que o
sucedido caso aconteceu.
Fui chamada naquela madrugada para atender uma paciente com dor de dente. Lá fui eu com meu casaco de cobertor São Vicente,
feito por mim, naquela noite gelada de Barbacena. Nessa época eu tinha mania
de acompanhar as temperaturas durante todos os dias e noites. Fazia 4 graus.
Atravessei portas e corredores e fiz a prescrição devida para aliviar a dor daquela mulher.
Só não contava com o inesperado. Um dos corredores era aberto para um pátio interno, por um lado, e com portas pelo outro lado. Ali ficavam algumas enfermarias. Saí da sala de enfermagem e fui para o
corredor citado onde, lá no final, ficava a porta de saída daquela ala. Tudo muito lúgubre.
Bem no fundo, por onde eu tinha que passar, me apareceu Margareth,
famosa por sua agressividade contra mulheres louras. Dizia ela que uma loura
havia roubado seu marido. Eu tinha meus belos cabelos compridos e quimicamente
louros. Ela era muito magra e com a pele esbranquiçada. Caminhava em minha
direção vestida apenas com uma camisola fina, transparente e curta. E eu caminhava em direção
a ela com meu medo de estagiária loura. Lá vinha ela cada vez mais perto de
mim. Tinha os olhos esverdeados e devia estar tomada pela homérica deusa Palas
Atena. E lá ia eu ao encontro dela. Então chegou bem perto do meu corpo que, naquela momento, deveria estar tremendo de medo. Olhou diretamente nos meus olhos, abriu um
esquálido sorriso e me disse:
-" Você tem uma bala pra me dar?"
Um outro caso se deu por volta de 2008, ou seja, trinta
anos após eu começar meu amor pela loucura além da minha.
Era um final de tarde e eu estava no meu semanal plantão
em urgência psiquiátrica num hospital público. A enfermagem comunicou a chegada
da Polícia Militar trazendo um paciente muito perigoso, de uma distante cidade
da região metropolitana.
Ao chegar para acolhê-lo, encontro um minguado rapaz no
chão com algemas nas mãos e pés e estes estavam amarrados uns aos outros. Parecia
que seria pendurado num pau de arara. A cena era surreal. Aparência descuidada,
roupas sujas e rasgadas. Escoriações e hematomas por todo o corpo.
Acocorei-me próximo a ele e me identifiquei. Disse-lhe que queria conversar com ele, mas que não o faria com ele naquelas condições. Ele respondeu de forma tranquila e falou-me seu nome.
Pedi que fossem retiradas as algemas e as cordas. A PM resmungou, fez
observações como “nós não nos responsabilizamos”, mas acatou meu pedido.
Solicitei à enfermagem que ficasse atenta e próxima à minha sala.
Convidei a mãe e ele a me acompanharem até o consultório.
Ela, envelhecida pela
idade, emagrecida, maltratada pela vida, resignada. Mas muito atenta ao que ele
me respondia.
Ele me disse que se chamava Ulisses e que havia jogado
o pai dele para fora de casa.
Estava explicada a tal força tão desastrosamente contida. Certamente advinda de outro mortal Ulisses, esse da Odisseia de Homero.
-“conta a história direito Ulisses!” Era a mãe ao lado.
-“eu peguei ele e a cadeira de rodas dele e joguei tudo
no terreiro”
A mãe me explicou que o marido tivera um derrame e ficara
paralítico.
-"E por que você fez isto?"- Era eu e minha calma.
-“ são as vozes que ficam me dando ordens” explicou ele.
-"E o que mais elas mandaram você fazer?" Era eu de novo.
-“elas me mandaram jogar minha mãe fora também”
E a mãe me mostrava escoriações nas pernas e nos braços.
-"E as vozes ainda continuam lhe dando ordens?"
-“continuam” - Respondeu ele pacificamente.
-"E agora, quais ordens elas estão lhe dando?" Era eu e minha idiotice.
-“pega a doutora e joga ela fora”
15/06/2014
GOSTEI,MEUS PARABENS
ResponderExcluirMuito bom eu ja passei por um momento quase igual a este.
ResponderExcluirVocê é corajosa e competente. Sempre foi em tudo que fez. Parabéns! Adorei.
ResponderExcluirJá tinha lido no livro e li de novo!
ResponderExcluirE quem é você? Obrigada pelo comentário.
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