quarta-feira, 27 de maio de 2015

A QUEM ABRAÇAR ?

       

                                                   A QUEM ABRAÇAR ?


   Acordei exaurida nesta manhã de sábado e desisti de alguns compromissos "Escolares". É assim toda sexta-feira a noite ao chegar em casa após meu plantão. Não sei se desfruto em comestíveis, se fico deitada na poltrona, se levanto, se saio para as ruas a caminhar... Esse é o sentido de ficar como barata tonta. O telefonema de um amigo me sacode. As filhas ainda não chegaram dos seus afazeres, suas aulas e  seus trabalhos. O corpo pede descanso, a alma pede sossego mas os pensamentos pedem passagem.

  Preparo meu café. Tento organizar meu quarto.Ligo a televisão. Coloco roupas na máquina para lavar. Tomo outro café. Desligo a televisão. Ligo o computador. Vou com minha filha buscar não sei quem. Não vou mais com minha filha. E está tudo desorganizado dentro de mim.

  Então me vem as lembranças simultâneas das várias postagens ontem, no FACE, pelo dia do abraço e de algumas cenas vividas nesta semana.

 Na última manhã de quinta-feira fui a Brumadinho resolver questões pessoais. Eis que encontro com um rapaz negro, magro, jovem, tímido e só. Coloquei um sorriso em seu rosto e logo o reconheci. Cumprimentei-o e ele, gentilmente, respondeu me nomeando após o Doutora. 

  Jamais esquecerei o que esse rapaz me ensinou apenas com seu jeito de ser.

  Eu trabalhava no serviço de saúde mental da cidade e houve um pedido para que a equipe fosse avaliar um jovem que havia se trancado dentro de casa, colocado tábuas para vedar janelas e portas e que não se comunicava com ninguém. Nesse tempo trabalhávamos com a aposta de levarmos os atendimentos até às inúmeras comunidades daquela linda cidade das montanhas quando assim se fizesse necessário. E ali havia um pedido. Não medimos esforços e para lá nos dirigimos na Kombi com o motorista mais antimanicomial que havia conhecido.

  A casa ficava isolada numa parte do enorme terreno, onde logo abaixo, ficava uma outra casa que era do irmão e, para onde, o pai fora levado. Obviamente que o moço não nos atendeu. Ficamos do lado de fora a conversarmos com ele. Tinha para mim que não era um monólogo. Eu acreditava que ele estava a nos ouvir. O irmão relatou-nos que ele havia tentado agredir o pai já idoso e o expulsara de casa.

  Continuamos a nos aproximar da casa lacrada. Logo percebemos que ele estava nos olhando por uma fresta. Chegamos mais perto.

  Depois de muita conversa com períodos de silêncio e espera, ele nos abriu a porta. Reparamos panelas destampadas com comidas estragadas e um pequenino jovem acuado, amedrontado, solitário e pedindo ajuda ao avesso ou seja, expulsando quem se atrevesse a entrar ali. 

  José tinha apenas vinte anos. Estava calmo, nos escutara e aceitara nosso convite para ir ao serviço na cidade, "Mas só na  semana que vem" nos disse ele. Fora difícil fazer-lhe entender e aceitar as medicações que havíamos levado. Ele estava por deveras desconfiado.

  E na semana seguinte  lá estava ele com o irmão do sorriso mais bonito que eu já havia visto até então. Passado alguns dias, José me agradece e me sorri com seu sorriso ainda mais bonito que aquele do irmão.

  Lá se vão dez anos e nosso jovem rapaz daquela região dos quilombolas continua seu tratamento e, certamente, continua seu sorriso pela vida afora.

  E ontem um outro fato me convocou o olhar para muito além da psiquiatria.

  Chegou ao hospital psiquiátrico onde faço minhas vinte e quatro horas semanais de plantão em urgência, um jovem rapaz trazido do norte de Minas, cidade já conhecida por seus vários encaminhamentos àquele serviço. Tratava-se de um não menos menino das idéias a lhe faltarem apesar de seus quase trinta anos. Não havia comunicação verbal. Apenas sons guturais da criança por falar. O relatório trazia uma drástica história a não deixar dúvidas quanto a inevitável internação mesmo que eu, naquele momento, duvidasse do que me havia chegado de informações acerca do nosso menino-bicho.

  Entretanto naquela noite nosso interno apresentara uma demorada crise convulsiva que deixou a todos em alerta.
No dia seguinte, fui reavaliar e discutir tal caso com os colegas e a coordenação. Qual não é minha surpresa ao constatar que todos ali haviam se esmerado nos cuidados da enfermagem de um jeito deveras humanizado. Os trabalhadores haviam lido, haviam concordado e haviam acatado minha decisão de que ali não era um lugar para nosso pequenino cidadão. 

 Chamei o parente acompanhante, um tio jovem e simpático que, muito solícito, me pede alta para seu sobrinho e se diz envergonhado com o que a moça disse do Zil "pois lá em casa meus pais se desdobram para cuidar dele, mas ele gosta mesmo é de ficar no meio do mato. Na noitinha a gente trancamos a porta, damos a janta e ele logo dorme , mas só no chão".

  Quem nos dera termos a coragem de nos conciliar com a natureza a tal ponto de deitar na quentura maternal da Terra. 

 Acho que, realmente, nos desnaturalizamos ao nos tornarmos seres superiores. 


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