quarta-feira, 20 de maio de 2015
PEDRO SÁVIO
PEDRO SÁVIO
Há alguns dias venho lembrando de um colega de sala de aula. Era um menino que entrou na minha sala no terceiro ano do grupo, lá pelos idos de 1968, naquele prédio improvisado e sem aparência de escola.
Minha turma vinha junto desde o pré-primário, que fora interrompido bruscamente com o horror das ditas bombas esperadas naquele dia 31 de março de 1964, embora eu nunca tivesse visto nem escutado alguma delas. Mas eu tive muito medo. Era uma turma especial, pois as professoras diziam que ali estavam os melhores alunos daquele pequeno, mal instalado e central Grupo Escolar Inconfidência. E, se por um lado as professoras eram bravas e exigentes no respeito a elas e nos deveres na sala de aula e nos "para casa", por outro lado elas ensinavam com o coração.
Era impossível deixar de aprender e se entusiasmar. Por coincidência do destino as minhas duas únicas professoras durante os quatro anos de grupo, tinham o mesmo nome: Dona Terezinha. A primeira Dona Terezinha era muito magra e muito brava mas foi ela quem nos ensinou a ler com a cartilha da Lili. Eu já sabia ler e escrever pois meu pai me ensinara ou eu aprendera sozinha. A segunda Dona Terezinha era mais baixa e gordinha e era pura alegria. Com ela eu aprendi que o mundo me esperava e que eu poderia ser só eu. Ainda tenho dentro de mim a braveza de uma e a doçura da outra.
Então, já inciadas as aulas, chegou um menino novo na minha sala. Ele não era bonito e diferente era o jeito dele, sempre calado e quando abria a boca, saia-lhe uma voz de taquara rachada. Tinha uma postura encurvada, uma tosse que nunca parava e um andar vagaroso. Eu tinha para mim que já conhecia aquele novo colega. E eu não estava errada.
Pedro Sávio era um novo vizinho lá pras bandas do Tiro de Guerra e eu já o vira, na volta da escola, descendo a rua naquela direção. Ouvi alguém dizer que ele era um dos muitos filhos de uma nova família que mudara do interior para nossa cidade.
Tentei aproximar daquele mais novo colega mas não tive sucessos. Ele andava sempre sozinho. Seu rosto parecia que tinha algo estranho. Um nariz sempre fungando, uma
pele seca e um cabelo que fazia lembrar palha de milho.
Passado alguns meses eu já nem notava as diferenças. Brincava com os meninos algumas vezes e a estranheza nem mais era notada. Não era mais novo. Já fazia parte da nossa turma.
Íamos e voltávamos em grupos e, obviamente, a pé com nossos uniformes azul marinho com blusa branca. Parecíamos um bando de andorinhas em revoadas pela manhã e esfomeadas na hora do almoço.
Quando chegaram as férias de julho eu, mais uma vez, fui para a casa da minha avó e dos meus tios na cidadezinha onde nasci. Tudo era só alegria e desperdícios de tantos prazeres.
Fui direto para a fazenda como sempre fazia. Lá meu mundo era composto por estrelas e vaga-lumes na escuridão, sons na mata e dos meus sonhos nas noites compridas. E eu gostava de ver os animais no pasto. Ficava olhando e queria saber de tudo. Naqueles dias meu tio avisou que a qualquer hora haveria o nascimento de um bezerrinho e que ele já estava de prontidão caso fosse necessária a sua ajuda.
E numa tal noite chegou a hora. Nenhum de nós queríamos dormir. Meu tio ouviu os berros de dor da vaca e lá se foi. O bezerrinho não nascia e a mãe chorava deitada sobre o capim bem preparado. Ao amanhecer meu Tio nos disse que a vaca não conseguira expulsar a sua cria que já estava sofrendo muito porque o cordão enrolara em seu pescoço e ele não tivera forças para nascer. Morreu por falta de ar. Fui lá ver a vaca. Seus olhos eram de um lamento a pegar na gente. Acho que também chorei ... Meu Tio me tranquilizou dizendo que arrumaria um outro filho para ela amamentar e cuidar como se fosse dela mesmo. Animei com aquela notícia. Entre os animais tudo se arranja. Como eles são inteligentes!
Chegou a hora de voltar para minha casa e minha escola. A alegria no reencontro com os colegas logo me trouxe de novo ao meu mundo dos estudos. Esqueci da vaca e da sua cria que morreu sem mesmo ser criado. Mas logo senti falta daquele menino do cabelo espevitado de palha de milho. Ninguém sabia dele. Talvez o pai tenha voltado para o interior.
Depois de alguns dias vieram me contar que Pedro Sávio tinha morrido. Ele tinha uma doença grave e os pais vieram para cá tentar uma vida menos penosa o filho. Fiquei pensando que meu colega não tivera forças para continuar vivo. Devia ter lhe faltado o ar.
Naquele tempo eu não sabia o que era a morte. Pensava que as pessoas apenas deixavam de ser vistas mas que estariam por ali, ao nosso lado. Fiquei com tudo aquilo bem guardado dentro de mim
Porém, vários anos mais tarde, iria chorar muito mais quando concluísse que a morte mata as pessoas e não deixa senão muitas saudades.
HGV-BH, 24/04/2015
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