domingo, 29 de maio de 2016

Amar em dois tempos

   Morava no interior  e vivia ainda menina nas terras do avô com todos os tios e tias ao redor. Os pais ajudavam na lida pesada e diária do trabalho na terra. Todos viviam e dependiam do que ali fosse produzido. Café, cana para rapadura e bagaço para o gado, arroz de várzea, muito milho para o fubá, para a farinha e para o gado. E tantos outros plantios de época. Havia também um extenso pomar com muitas qualidades de frutas. E havia ainda os filhos e netos da escravidão. Esses eram de casa. Mesmo porque a carta assinada pela princesa Izabel não arrancou deles o respeito, a obediência e a hierarquia. Isto só o tempo e as conquistas de cada um ao final daquele derradeiro século, por todo o próximo e por outros ainda vindouros séculos.

   Chiquinha era uma das netas do proprietário daquelas terras. Seu avô quando chegara por ali comprara alguns escravos e apaixonara por uma bela mulher negra. Casou com uma mulher branca para garantia dos dotes dos filhos mas viveu toda a sua vida entre os dois leitos. Os dez filhos cresceram como irmãos mas apartados pela igreja e pela cor. A menina era uma criança feliz. Bonita. Os anos deixaram-na ainda mais bonita. Porém chegada a juventude ela dera de isolar e de silenciar. Alguns passaram a achar que ela não daria em nada. Ela atendia aos mandos dos mais velhos, fazia seu trabalho com disciplina e até aprendera a ler. Mas continuava isolada e calada. Chamaram o padre para rezar por ela e dar bençãos. De nada adiantou. Levaram para a benzição na distante casa das negras mães de santo. Foi através dos santos africanos que ficou sabido que a menina tinha a dor de amor.

   Só ai é que toda a família foi perceber que a menina tinha olhos sonhadores e uma rara beleza de menina-moça. E trejeitos de mulher. O desespero  tomou conta dos moradores da fazenda. Chiquinha com seus 13 anos estava doente de amor. Coube à mãe uma conversa com aquela filha tão distante. Mas falar o quê ? A mãe de nada sabia de coisas de amor. Era só obediência ao marido escolhido pelos pais. Foi assim que a mãe chegou para a filha. Dessabida do amor. 

   Mas chamou a filha para uma conversa dentro daquele quarto onde dormia com o marido para as obrigações do amor, sem amor. Não sabia o que dizer. Não tinha o que dizer. Olhou para a filha e aventurou uma pergunta: " O que você está sentindo ?" Estava mais interessada em ouvir de amor do que acolher o sofrimento da filha. Chiquinha corou a face, abaixou a cabeça e chorou. Falou do peito doído, do coração disparado, da palavra presa, dos pés sem chão e da desalegria. Sentia tudo isto ao um só tempo quando via ou pensava em Ozeias. 

-"Mas Ozeias é negro, neto de alforriado, empregado da fazenda..." Exclamou a mãe ainda mais perdida naquela conversa.

   Zefa chamou o marido às escondidas e colocou-o a saber da conversa. O homem perdeu o juízo. A filha jamais se casaria com aquele sem nada. Logo tomou rumo de pai. Foi até a cidade. Conversou com o padre que deu conselho de casar a filha com um escolhido seu antes de alguma desgraça.

   Estava decidido. Chiquinha ficaria noiva de Inácio, filho de um compadre e vizinho daquelas terras. Seria no aniversário de quatorze anos. Nada foi dito à mocinha que continuava a seu modo. Calada. Quieta e sonhadora.

   Nas vésperas do dia de seus anos a mãe falou do noivado e mandou ficar bonita. Nem precisava. A beleza de Chiquinha se via de longe e foi por isto que o tal moço aceitou de prontidão a mão oferecida. 

   A filha nem teve tempo para pensar. Tudo fora pensado por ela. Ela só devia ficar no lugar imposto. E a festa se deu com todas os requintes das famílias proprietárias. 

   O casamento marcado para o próximo aniversário deixou as mulheres encarregadas do enxoval e os homens acumulando os necessários para a festança. Havia muito o que fazer.

   Ozeias fora afastado dos olhos de Chiquinha. Emprestado para uma fazenda distante. Trocado por outro. A menina deveria de só pensar no noivo. E tudo se sucedeu conforme feito e ordenado pelo pai. 

   O casamento fora motivo de conversas por muito tempo. A noiva estava linda em vestido tão bem feito pelas costureiras e bordadeiras da cidade. A comilança fora até prá lá da meia-noite. Os doces e bebidas extasiaram a todos no prazer da gula. Chiquinha estava quieta. Cumpriu seu papel de filha, noiva e agora haveria de cumprir seu papel de esposa. 

  Naquela primeira noite se entregou aos desejos do outro sem equívocos. Ali estava apenas seu corpo. Fechava seus olhos para ver Ozeias. E assim foram tantas noites a se perderem nas contas do tempo. No ano seguinte nasceu sua primeira filha, Olinda. No outro ano chegou José e no outro chegou Bento. Chiquinha compreendeu o exercício de mãe e o cumpriu com toda sua garra de mulher. 

   Às vezes lembrava do que a mãe não disse naquela conversa não havida. Agora entendia a mãe e sabia o que ela não tinha a dizer. Jamais deixou de saber dos caminhos de Ozeias. Sabia escutar quem quer que fosse e, nas entrelinhas, ela escutava sobre ele. Sabia que ele também, onde estivesse, ouviria falar dela e se amavam assim nas palavras faltantes dos outros. 

   Muitos anos se passaram. Chiquinha fora morar na cidade por decisão dos filhos. Maior conforto. Então decidiu descumprir seu papel de esposa fiel. Num tal dia se olhou no espelho, encontrou a maturidade do seu corpo e o desejo de ir buscar o amor deixado no tempo. Telefonou para Ozeias que ficara solteiro e, agora, era dono de uma mercearia numa cidadezinha próxima. Vestida de mulher apareceu aos olhos dele. 

   Não houve tempo passado entre eles. O coração de Chiquinha disparou, seu rosto ruborizou, as mãos tremeram e os sonhos tomaram vida. Ozeias percebeu e, calado, também sentira tudo aquilo de amor. Ficaram juntos naquela tarde. E só então perceberam que ainda eram virgens. 



09/05/2016

3 comentários:

  1. Sigo relendo este conto e me emocionando cada vez mais... gratidão!��

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  2. Sigo relendo este conto e me emocionando cada vez mais. Gratidão😃

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  3. João, obrigada pelo delicadeza do comentário. Amar é mais forte que o sofrer. Então, na vida, o que nos resta é amar...

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