quarta-feira, 27 de julho de 2016

Crônica: Feijoada e galopé

Nem me lembro quando tomei a decisão pela compra deste pedacinho de terra neste lugar. Mas sei que fora como um amor à primeira vista, desses que a gente até esquece da vida da gente pra viver a vida do outro. E foi assim mesmo. Entretanto um lugar, ao invés de nos fazer perder como no amor, nos traz a certeza de um encontro. Esse na solidão e, no meu caso, no contato com a natureza. E eu já me via vivendo ali entre as árvores e os pássaros desde aquele dia.

Eu e meu pedaço de terra começamos uma relação de afeto e cumplicidade. Logo conheceria minha vizinha e toda sua família que me recebeu como parte da mesma. Só então fui entender que ali moravam pessoas que haviam nascido e crescido juntos e que formavam uma grande comunidade. Portanto eu era uma forasteira. Mas o tempo me mostraria também que eu haveria de integrar àquela comunidade como se ali eu deveras tivesse nascido.


E um dia, chegando na casa de uma vizinha, fui entrando e me deparei com uma cena da minha infância, inimaginável nos dias atuais. Várias mulheres fazendo farinha de mandioca com as mais rudimentares técnicas. Havia uns três fogões à lenha, improvisados em pedras e tijolos, com gigantescos e rasos tachos com a mandioca ralada e escorrida pronta para virar farinha. O aroma daquela reação química espalhava pelos ares do quintais da redondeza. 

Entre aquelas mulheres uma me chamou a atenção. Sua beleza e sorriso acolhedor no meio de tudo aquilo parecia surreal. E, para minha surpresa, ao serem apresentadas fico sabendo que seu nome era Linda. Obviamente tornei-me amiga de todas e de suas famílias. E Linda ainda hoje nos faz deliciosos doces caseiros.

Porém, ao invés de construir minha tão desejada casa, fiz um chalezinho para me abrigar nos finais de semana. Aos poucos ele fora tomando meu jeito. E chegou uma velha cadela que, como um tatu, furou vários buracos na terra e por ali foi ficando e se acomodando. Suas maneiras nobres me fizeram dar-lhe o apelido de Duquesa. Mais tarde chegou um cachorro jovem e muito arisco. Fora necessário muito tempo e muito tato para conquistá-lo. Então cerquei meu pedaço de chão e deixei que meus companheiros cães decidissem pelas ruas ou comigo. Até hoje ainda fogem para um passeio pelas estradas. Então veio Dexter. Adotado pela minha filha que o encontrou filhote nas ruas da cidade grande. Barrigudo de tantos vermes, sujo e esfomeado. Hoje somos uma grande família.


Mas hoje também tenho muitas garrafas de vinho e muitos livros. As primeiras são parceiras para as partidas infindáveis de buraco. Ainda tenho muitos passarinhos livres que vêm beliscar os grãos que coloco para arrebanhá-los. A vizinha ao lado que fora a primeira a me receber e que pode ser minha filha, cuida da minha casa e de mim. Com dedicação a enfeitar de flores e outros mimos a minha casinha.


E neste domingo fui convidada para o almoço de aniversário de um dos patriarcas da famílias "funileiras", Sô Joel. Apenas as cinco filhas e suas famílias, a irmã e as sobrinhas. Mas também fui convidada. Eu que moro no pedaço de terra que a herança da mãe deixou para as meninas do Sô Joel. 


E no almoço uma feijoada deliciosa no fogão à lenha. E, ao lado, uma panela de galopé. Muita couve. Saladas. Depois a mesa e o baralho para o jogo de buraco. Minha parceira, neta do dono da casa e do aniversário e uma excelente jogadora, brilhou nas cartas. E a mestra e sua jovem aprendiz ganhamos a partida.


Durante o jogo ouvimos a história de amor do jovem casal de adversários. Muito "beijo na boca" e muitos arranjos para iniciar o namoro de oito anos. Enquanto eu saboreava aquela narrativa fora servido um maravilhoso bolo de feliz aniversário. Festa de aniversário para mim tem que ter bolo e vela e "Parabéns pra você". Afinal fazer oitenta e um anos, ao lado de filhas, netos e bisnetos, deve ser genial. E eu quero chegar lá com a mesma alegria e jovialidade do Sr Joel. Só não tenho seus olhos verdes. Ou azuis?


E já no final da noite deste domingo de julho aproveito minha escrita para constatar que fizera a escolha certa ao mudar para este lugar. Porém tenho o temor de que meus pés criem raízes e que não saiam mais daqui.

24/07/2016

2 comentários:

  1. A minha vontade de morar num pedaço de chão como o seu foi agora mais intensificado.
    Excelente seu conto.

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  2. Maravilha. Saudade dos meus tempos também...

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