terça-feira, 12 de julho de 2016

Um escorpião no meu pé

Eu achei aquela ideia ótima. Afinal iríamos mudar para uma casa de esquina cuja frente dava para a rua rica mas com toda uma parte voltada para a minha rua. E esta minha rua era nova, mas mal nascida e pobre. Portanto aquela casa alugada seria um local estratégico. Eu iria morar perto dos ricos, mas sem perder meus muitos amigos daquela rua que eu tanto amava. E éramos deveras muito pobres e muito felizes.

Meu pai, cuidadoso com a casa que conseguira comprar quando da nossa vinda do interior, resolvera fazer uma reforma dadas as péssimas condições do telhado e de toda a madeira da casa. E tinha muitos escorpiões. Às vezes minha mãe encontrava vários filhotes atrás da provável mãe. Ou do pai? Dizia que a idade deles era contada pelos gomos da cauda e que eles suicidavam quando a gente fazia um círculo de algodão embebido no álcool e colocava fogo. Eles picavam seus próprios corpos virando o rabo e injetando o veneno com o ferrão que fica no final da cauda. Eu tinha tanto medo e não gostava nem de vê-los. Mas acabava encontrando-os por todos os lados da casa. E eles eram muitos. Nunca acabavam.

Por isto mudamos de casa. Era preciso tirar o telhado e os tacos velhos.

A nossa nova casa, alugada, era ainda muito mais velha que a nossa de verdade. Era muito grande, cheia de quartos e mais quartos depois da cozinha e do banheiro. Entretanto ela era sempre muito escura. Acho que faltavam lâmpadas ou as paredes estavam com suas pinturas envelhecidas e sujas. E eram poucas eram as janelas.

Na outra esquina ficava a pensão de dona Biluca. Sempre cheia das meninas que vinham estudar na cidade grande. Ainda lembro de muitas delas.

Minha mãe, por essa época, mais uma vez adoeceu e ficou de cama. Acho que fora devido às dificuldades encontradas naquela casa alugada. E ela sempre achava que meu pai não teria os fundos necessários para pagar o aluguel, colocar a tão falada e desejada laje na casa e alimentar os sete filhos. Ele era funcionário público e tinha um salário fixo. Mas dizia que era muito pouco o que ele recebia. Acho que era muito pouco para os sonhos que ele tinha para toda a família.

E numa tarde de sexta-feira, após chegar da escola, fui brincar na minha rua. Aquela dos meus amigos. Corríamos de um lado para outro. Conversava com uma amiga e com outra.  E o tempo era curto demais para tantas brincadeiras da minha infância. Já anoitecendo subi a rua em direção a esquina, entrei na casa e fui direto para a cozinha. Estava com sede. O filtro de barro ficava num canto, perto da pia. Imediatamente senti uma forte dor no meu pé esquerdo. E gritei. 

Era um escorpião.

-“Não mate ele!”

Era minha mãe gritando também. Era preciso colocá-lo ainda vivo dentro de um vidro com álcool para ele soltar seu veneno e passar aquele álcool envenenado no meu pé.

Daí a pouco eu já não vi mais nada. Ouvia algumas vozes ao longe. Um dizia que eu devia comer rapadura para cortar o veneno. E eu devo ter comido muita rapadura. Outro dizia para me levar em Belo Horizonte para tomar o soro. Lembrava do meu pai que sempre falava nas cascáveis capturadas na minha cidade e levadas para o Butantan em São Paulo. Mais tarde elas seriam levadas para a Funed quando os motoristas passavam lá em casa com aqueles caixotes com as danadas. Outros ainda diziam que eu teria acessos de febre.

Meu tio farmacêutico fora chamado.

 -“Devemos esperar as próximas vinte e quatro horas... Aqui na cidade não temos o soro”. Disse meu tio.

Eu então comecei a delirar com o veneno espalhando pelo meu corpo. Eu devia ter seis anos nessa época. Via monstros atravessando as paredes do quarto e me matando e sangue se espalhando por todo o quarto. Via pessoas dizendo que eu iria morrer e via facas afiadas apontando para meu corpo. A febre não baixava. Os delírios continuavam. Não lembro quem mais cuidou de mim e nem onde minha mãe estava.

Só sei que eu não morri. Amava aquele quarto onde me colocaram e acho que fora ele que me salvara. Os primeiros raios do sol entravam nele e o deixava cheio de vida. Aquele lado da casa que dava para a rua era muito mais alto. A casa fora construída sobre um muro de pedras. Daquela janela eu admirava a placa pregada na parede da casa de Dona Biluca onde se lia o nome da minha rua de verdade. E toda a história do homenageado da placa era contado por meu pai. Os familiares ainda viviam no final da rua. Tinha uma banda rica e uma banda pobre da família daquela placa.

E eu melhorei depois de uns dias. Mas a partir daquele escorpião uma coisa não saiu mais da minha cabeça. Fora necessário eu morrer e não morrer para saber a diferença entre pessoas pobres e pessoas ricas. Eu não fora levada para um hospital porque meu pai não tinha dinheiro.

Eu nasci de novo. E de novo pobre. E renasci sabendo o que era ainda muito cedo para saber. A riqueza e a pobreza podem brincar juntas mas a diferença pode estar entre a vida e a morte.

A dor dessa descoberta fora muito maior que a dor da picada do escorpião. E ainda dói muito até hoje.


22/06/2016

4 comentários:

  1. por essas e outras voce se tornou a mulher forte de hoje.Valeska.

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  2. Essa diferença existe até hoje. Ricos e pobres brincam, estudam, trabalham juntos, mas quando um pobre precisa de ajuda, é com outro pobre que ele conta.

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