Eu achei aquela ideia ótima. Afinal iríamos mudar para uma
casa de esquina cuja frente dava para a rua rica mas com toda uma parte voltada para a minha rua. E esta minha rua era nova, mas mal nascida e pobre. Portanto aquela casa alugada seria um local estratégico. Eu iria morar perto dos
ricos, mas sem perder meus muitos amigos daquela rua que eu tanto amava. E
éramos deveras muito pobres e muito felizes.
Meu pai, cuidadoso com a casa que conseguira comprar quando
da nossa vinda do interior, resolvera fazer uma reforma dadas as péssimas
condições do telhado e de toda a madeira da casa. E tinha muitos escorpiões. Às
vezes minha mãe encontrava vários filhotes atrás da provável mãe. Ou do pai? Dizia
que a idade deles era contada pelos gomos da cauda e que eles suicidavam quando a
gente fazia um círculo de algodão embebido no álcool e colocava fogo. Eles
picavam seus próprios corpos virando o rabo e injetando o veneno com o ferrão que fica no final da cauda. Eu tinha tanto medo e não gostava nem de
vê-los. Mas acabava encontrando-os por todos os lados da casa. E eles eram muitos. Nunca acabavam.
Por isto mudamos de casa. Era preciso tirar o telhado e os
tacos velhos.
A nossa nova casa, alugada, era ainda muito mais velha que a
nossa de verdade. Era muito grande, cheia de quartos e mais quartos depois da
cozinha e do banheiro. Entretanto ela era sempre muito escura. Acho que faltavam
lâmpadas ou as paredes estavam com suas pinturas envelhecidas e sujas. E eram poucas eram as janelas.
Na outra esquina ficava a pensão de dona Biluca. Sempre
cheia das meninas que vinham estudar na cidade grande. Ainda lembro de muitas
delas.
Minha mãe, por essa época, mais uma vez adoeceu e ficou de cama. Acho que
fora devido às dificuldades encontradas naquela casa alugada. E ela sempre achava que meu pai não
teria os fundos necessários para pagar o aluguel, colocar a tão falada e
desejada laje na casa e alimentar os sete filhos. Ele era funcionário público e
tinha um salário fixo. Mas dizia que era muito pouco o que ele recebia. Acho que era muito pouco para os sonhos que ele tinha para toda a família.
E numa tarde de sexta-feira, após chegar da escola, fui
brincar na minha rua. Aquela dos meus amigos. Corríamos de um lado para
outro. Conversava com uma amiga e com outra.
E o tempo era curto demais para tantas brincadeiras da minha infância. Já anoitecendo subi a
rua em direção a esquina, entrei na casa e fui direto para a cozinha. Estava com sede. O filtro de barro ficava num canto, perto da pia. Imediatamente senti uma forte dor no meu pé esquerdo. E gritei.
Era um escorpião.
-“Não mate ele!”
Era minha mãe gritando também.
Era preciso colocá-lo ainda vivo dentro de um vidro com álcool para ele soltar
seu veneno e passar aquele álcool envenenado no meu pé.
Daí a pouco eu já não vi mais nada. Ouvia algumas vozes ao
longe. Um dizia que eu devia comer rapadura para cortar o veneno. E eu devo ter comido muita rapadura. Outro dizia para me levar em Belo Horizonte para tomar o soro. Lembrava do meu pai que sempre falava nas cascáveis capturadas na minha cidade e levadas para o Butantan em São Paulo. Mais tarde elas seriam levadas para a Funed quando os motoristas passavam lá em casa com aqueles caixotes com as danadas. Outros ainda diziam que eu teria acessos de febre.
Meu tio farmacêutico fora chamado.
Meu tio farmacêutico fora chamado.
-“Devemos esperar as próximas vinte e quatro horas... Aqui na
cidade não temos o soro”. Disse meu tio.
Eu então comecei a delirar com o veneno espalhando pelo meu
corpo. Eu devia ter seis anos nessa época. Via monstros atravessando as paredes
do quarto e me matando e sangue se espalhando por todo o quarto. Via pessoas dizendo que eu iria morrer e via facas afiadas
apontando para meu corpo. A febre não baixava. Os delírios continuavam. Não
lembro quem mais cuidou de mim e nem onde minha mãe estava.
Só sei que eu não morri. Amava aquele quarto onde me colocaram e acho que fora
ele que me salvara. Os primeiros raios do sol entravam nele e o deixava cheio
de vida. Aquele lado da casa que dava para a rua era muito mais alto. A casa
fora construída sobre um muro de pedras. Daquela janela eu admirava a placa
pregada na parede da casa de Dona Biluca onde se lia o nome da minha rua de
verdade. E toda a história do homenageado da placa era contado por meu pai. Os
familiares ainda viviam no final da rua. Tinha uma banda rica e uma banda pobre
da família daquela placa.
E eu melhorei depois de uns dias. Mas a partir daquele escorpião uma coisa não saiu mais da minha cabeça. Fora
necessário eu morrer e não morrer para saber a diferença entre pessoas pobres e
pessoas ricas. Eu não fora levada para um hospital porque meu pai não tinha
dinheiro.
Eu nasci de novo. E de novo pobre. E renasci sabendo o que era ainda muito cedo
para saber. A riqueza e a pobreza podem brincar juntas mas a diferença pode estar entre a vida e a morte.
A dor dessa descoberta fora muito maior que a dor da picada do escorpião. E ainda dói muito até hoje.
22/06/2016
Adoro..
ResponderExcluirObrigada Antônia pela leitura e pelo "adoro".
ResponderExcluirpor essas e outras voce se tornou a mulher forte de hoje.Valeska.
ResponderExcluirEssa diferença existe até hoje. Ricos e pobres brincam, estudam, trabalham juntos, mas quando um pobre precisa de ajuda, é com outro pobre que ele conta.
ResponderExcluir