segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Trapos

Nunca havia me queixado do cansaço no ouvir meus pacientes, entretanto me queixava sempre das condições de trabalho e dos colegas que não conseguiam escutar as outras dores por detrás daquelas referidas às diversas consultas.


Desde o início da faculdade de medicina sabia que seria psiquiatra. Na infância havia convivido com alguns parentes e suas loucuras. E, ainda na infância, tentava entender tantos desatinos. Aproximava-me deles para ouvir suas palavras recheadas de magia e alegria. 

Fui aprovada para fazer a residência em psiquiatria mesmo antes de ter colado grau no final do longo curso em uma faculdade federal. E nem tentara outro concurso para tal uma vez que aquela instituição tinha minha preferência.

Também sabia, desde sempre, que iria trabalhar com portadores de doenças mentais das classes mais pobres e sem recursos. Portanto, terminado minha especialização, aceitei um grande desafio, qual seja, atender pacientes internos de uma colônia de hanseníase que também fossem portadores de distúrbios mentais.

E, hoje, o dia tem sido de lembranças. Sorri como se ainda estivesse ouvindo meus familiares criticarem a escolha. "Quer dizer que você vai trabalhar com doidos leprosos?"

Sim, aceitei o emprego e aprendi tanto sobre a hanseníase quanto sobre a psiquiatria. E aprendi muito acerca da historia dos sujeitos e suas doenças estigmatizantes nas colônias de leprosos no Brasil e no mundo. 

Mas hoje acordei pensando novamente  numa das várias pacientes atendidas naqueles primeiros tempos de meu trabalho. Certamente já se passaram mais de um quarto de século. Trazia um nome comprido, diferente e impossível de não ser lembrado. Carregava no nome sua própria existência, assim pensava pois desde sempre já caminhava pelos estudos e escritos de Freud e Lacan.

Ainda posso ver à minha frente a angústia do marido que procurou-me pedindo ajuda para a mulher adoentada. O desespero do homem grudou em mim. Era um homem ainda jovem embora a face fosse marcada por cicatrizes e bexigomas. Trazia, no olhar de miséria, muita honradez. Estava sem saber por onde começar sua própria história que se misturava a da esposa.


Disse-me que "a mulher minha andava sem olhar". Já não cuidava dos sete filhos menores e nem de si. Ele, recém chegado àquela comunidade com toda sua família, precisava trabalhar para sustentar as nove bocas. Então, ainda uma jovem médica sonhadora e dedicada, percebi a urgência do caso e não declinei do meu papel. Era preciso urgência. Que ele trouxesse a esposa no dia seguinte.

Fechei os olhos como se não quisesse voltar àqueles tempos. Entretanto, ao deixar de olhar, os demais sentidos afloraram e me vi sentindo toda aquela cena que jamais saíra de mim. Aquele homem ao lado de uma mulher que carregava uma criancinha no colo e outros três na barra da saia. Pude sentir que a mesma não ninava no colo a vida de um filho. Tinha na pele a cor do chocolate, guloseima que provavelmente, jamais havia visto ou sentira o sabor. Os cabelos negros estavam negligentemente amarrados com uma tira de pano. E um rosto que não trazia vida. Sua dor era contagiante. Abracei aquele quadro quase surreal; incomumente. 


Pedi ajuda a outros profissionais para um acolhimento que demandava muito mais que tão só um atendimento psiquiátrico. Pedia vida. Vidas para nove seres desumanizados.

Ainda agora duas lágrimas rolaram pela minha face já cheia das linhas de expressão ou rugas como gostaria que lhe fossem atribuídas.


E naquele dia iniciara uma série de procedimentos para tentar aliviar o coração daquela mulher/mãe.

Novos atendimentos se deram. O diagnóstico fora feito e o prognóstico, sombrio, exigia condutas firmes e dóceis para que destinos pudessem ser efetivados ali onde havia apenas sementes.

E toda a família fora acolhida e atendida. A mulher fora medicada e orientada quanto ao tratamento. Agora era tempo de esperar. E esperei. Desesperadamente.

Nas semanas seguintes a mulher voltara com a angústia do companheiro ao lado. Sem melhoras. A medicação prescrita trazia pouco ou nenhum benefício. O marido havia conseguido trabalho mas temia deixar os filhos em casa com a mãe daquele jeito. A equipe do ambulatório mantinha visitas domiciliares. Em vão.

Poucos dias depois fora informada que minha paciente havia se matado. De trapos ela fez sua forca. Na minha garganta ainda trago o mesmo nó que atou minhas palavras. E sem palavras continuei a atender muitas outras mães que viriam a deixar seus filhos órfãos.

Hoje afirmo que meu trabalho trouxe tantas outras cenas surreais naqueles e nestes tempos recentes que, por vezes, me julguei incapaz do projeto de uma psiquiatria clássica acrescida da psiquiatria social, humanizada e com um viés psicanalítico.

Todavia sentia-me que humanizava cotidianamente diante de cada mulher ou homem que chegavam no desespero. E sempre me engasgava com o comprimido que prescrevia aos mesmos.

Hoje, passados tantos anos dessa e de tantas outras tragédias humanas, aponto que a tão prometida inteligência artificial para as próximas décadas, os avanços na bioquímica do cérebro, as neurociências, os marcadores biológicos e todo o cientificismo deste século XXI, não terão como saber daquilo que as fiandeiras dos destinos tece para cada um de nós.

Proponho que a medicina se volte ao seu patrono, Hipócrates; que à psicanálise se juntem a sociologia, a filosofia, a antropologia e que, juntas, tentem suavizar o fardo de nós, Homo sapiens.



Funil, 05/05/2017

3 comentários:

  1. Onde anda você? Que expôs a fragilidade e ao mesmo tempo a força de uma brasileira, sim, uma brasileira, que teve de carregar nas costas as alegrias e desventuras daqueles que, com todo conhecimento reunido em anos de estudo do comportamento e da mente humana,cruzaram seu destino e, com muita propriedade, mostraram que a vida não é uma coisa fácil de desvendar por mais que achemos que os livros e mestres possam nos preparar pra isso. Eles são a essência da dualidade do viver, pois, sem essa dualidade, não teríamos parâmetros para traçar um caminho de análise para o comportamento humano. Como saber o que é doce se não experimentar o amargo? É a alegria, o que seria se não existisse a tristeza? O melhor tratamento que podemos dar à nossos clientes é o que damos, porque eles nos buscam para isso, e esteja certa, para maioria é de grande valia. Se não deu certo as vezes, ainda é porque tentamos acertar. Portanto, pergunto novamente, por onde andas? Suas histórias estão fazendo falta. Beijo no coração.

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  2. Esse relato é incrível. O que vemos hoje, são profissionais que pensam que dar um remédio e deixar, principalmente crianças, apáticas, é a melhor solução. E o brilho no olhar? A alegria que contagia quem está por perto? Tenho visto isto em alunos, pequenos seres, cobaias de tratamentos. Está faltando amor, cuidado com o próximo, acolhida, assim como você fez.

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