segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

UMA DÚVIDA CRUEL



Por essas contingências do Tempo, Eleutério sente necessidade de usar um aparelho auditivo. Seu otorrino -
aquele que se parece um pouco com Mr. Magoo, personagem de desenho animado, e que faz lembrar também Yoda, de Star Wars - é radicalmente contra; ele acha que devemos nos conformar com os percalços da idade. No entanto, Eleutério se vê pressionado por pessoas próximas, talvez cansadas de terem de repetir frases por várias vezes.
Você sabe: a gente só dá atenção àquilo que nos interessa. Por isso, acho bom você não considerar este tema desinteressante, já que, mais cedo ou mais tarde, ele vai bater à sua porta. Com Eleutério acontece agora, na flor de sua velhice.

Mas ele está em dúvida: usar ou não usar um aparelho para surdez? Para ter uma melhor resposta, procura observar as pessoas, trocando ideias com umas e outras. Viu – antes nem tinha reparado – que o amigo Adamor usava um aparelho. Eleutério quis saber o custo e como era usar o dito cujo.

- Cara Pálida, é o maior barato, putzgrila – (ele tem mania de usar gíria da década de 60). – Comprei há dois anos, e custou R$25 mil.

- Putzgrila digo eu – falou Eleutério, indignado. – Eu não quero um aparelho para ouvir até pensamento dos outros, não.

Outro que usa aparelho é o Marízio. Quando adolescente, os colegas diziam que ele era surdo por conveniência. Foram muitas as vezes em que, nas aulas, durante arguições, respondia coisas que o professor não havia perguntado. Quando esse chamava sua atenção, vinha com a desculpa: “- Peço desculpas, professor, mas entendi outra coisa”. O professor se conformava: “- Deixa por isso mesmo”. E o Marízio se dava bem.

Em casa, assim que vai dormir, ele pergunta para a mulher:

- Maria, você tem mais alguma coisa para me dizer?

- Não – fala a Maria. – Está tudo bem.

- Então, boa noite – ele diz, enquanto retira o aparelho.

Eleutério gostou da ideia, achou tudo muito poético.

Um vizinho, o Nô, além de surdo é analfabeto, nem sabe olhar as horas num relógio. Diz que se orienta pelo Sol; quando chove ou o tempo está nublado, deixa-se levar pela barriga (hora de almoçar ou de jantar). Perguntado se não gostaria de usar um aparelho, falou:

- Comigo não tem mais jeito. Com 87 anos de idade, agora é só esperar a hora de ir – diz ele, apontando para o céu, enquanto uma lágrima teima em rolar pelo seu rosto.

Nô é uma pessoa emotiva e de muita fé. Já falei sobre ele em texto passado. Lembra quando teve que tirar o dedão do pé numa cirurgia? Quando perguntado onde estava o dedo, respondia: “- O dedo ficou com o doutor Alfredo”.

Fazendo pesquisa de preços, Eleutério ouviu de uma fonoaudióloga:

- Um cliente aqui da loja já refez seu testamento três vezes, depois que passou a usar um aparelho...

Usar ou não usar um aparelho? – Eleutério continua se perguntando. Fazendo o teste proporcionado pelas lojas de revenda, tem hora que pensa que sim: quando ouve sons antes não percebidos, como o cantar de pássaros soltos nas árvores. No entanto, tem momentos em que pensa que não é melhor, não. Como, por exemplo, quando ouve o relógio da cozinha de casa com um tic-tac parecido com aquele do filme “Matar ou Morrer”, ou, então, quando está dentro de um lotação. Se antes o barulho do motor mais as conversas pareciam fundo musical, agora parecem uma sessão de tortura, sem que ele possa ficar fazendo o que gosta: pegar uma caneta e papel, ficar escrevendo suas bobagens. Na verdade, o mundo está parecendo para ele uma grande sala de cinema, cheio de efeitos surrounds. Ao ouvir, por exemplo, a freada de um ônibus, ele quase enfarta.

Tem outra coisa mais séria. Eleutério sofre de um distúrbio neuropsíquico chamado PFL. Não se trata de uma sigla de time de futebol nem de partido político, mas de uma invenção sua (Prolapso de Fim de Curso), quando sua filha começou a estudar medicina e ele frequentava um curso de eletrônica. Tal nome não passa de uma forma delicada para designar lerdeza. Eleutério quer crer que seu PFL, ou retardo mental, se deve à sua surdez. Ele que, até agora, viveu conformado com sua lerdeza, está preocupado: vai que ela, a lerdeza, não tem nada a ver com sua perda auditiva e seja coisa dele mesmo. Coitado, como irá conviver com a verdade?

Etelvaldo Vieira de Melo





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