domingo, 2 de dezembro de 2018

O que ela queria?

(Este conto foi premiado com o Primeiro Lugar no VII Concurso de Contos e Poemas da OAP/UFMG em 30/11/2018)


                                                                                          (*)
Ela mudou de cidade. Tudo aconteceu tão rápido que nem teve tempo para pensar no depois. Uma amiga bem que advertiu sobre outros tempos: " Você não encontrará a mesma rua que deixou quando saiu de lá. As pessoas de sua época que ainda estão lá não fizeram o mesmo percurso de vida que você". Mas a decisão já havia sido tomada. Dificuldades nos relacionamentos com os filhos, desavenças com um vizinho de apartamento, aposentadoria, a chegada da terceira idade e outros fatores foram os motivos alegados para deixar a cidade. Entretanto não seria apenas uma mudança. Seria uma volta. 

Izabel sentia-se cansada da vida. Havia o exaustivo trabalho diário no hospital, as tarefas de chefe de família e dona de casa. Havia a responsabilidade pela educação dos filhos. Havia a solidão de afetos. E havia o peso da idade. Tudo isto já vinha trazendo muito desânimo, cansaço e um crescente isolamento. Atualmente passava seus fins de semana dentro dos poucos metros quadrados do seu apartamento. A divisão dos bens viera após um demorado divórcio litigioso. Mas era o apartamento que lhe dava a melhor vista da cidade. Dizia a todos que não comprara o apartamento mas a visão permanente da cidade aos seus pés.

Um filho logo casou e escolheu, para construir sua família, uma cidadezinha nas redondezas da capital. A moça era de lá. Uma filha queria estudar e trabalhar noutra cidade. Outra filha iria para onde fosse aprovada em concursos públicos. Ela literalmente sobraria por ali.

Havia muitos anos que matutava acerca das alegrias da sua adolescência. Era feliz. Muito feliz. A rua era sua casa. Ali brincavam, faziam festas, encenavam peças de teatro escritas por algumas amigas e enamoravam dos vizinhos. Ali se sentia completa. Nada faltava. Pois bem, queria sentir tudo aquilo de novo. De novo. Agora seria a hora.

Comunicou a decisão aos filhos. Colocou a "vista permanente" do apartamento a venda. Contratou a transportadora e foi-se. A rua a recebeu de braços abertos. A casa voltaria a ter moradores. E Izabel voltaria a ter alegrias. Voltou para a casa de seus pais que estava fechada havia alguns anos. Fez pequenas reformas; pintou-a toda de branco; limpou o que foi preciso. A casa ficou ainda mais linda do que era antes. Uma casinha numa rua estreita que acaba numa ladeira abaixo. Ali ela fora moça.

Os primeiros dias foram de entusiasmo. Muitas visitas. Muitos cafés. Muitas lembranças. Ela encheu-se de vida. As filhas vieram mas logo voltaram. Conseguiram empregos na capital. Izabel sabia que seria assim. No seu aniversário fez uma festa e convidou as antigas vizinhas. Foi uma noite memorável. Porém continuou mantendo cursos e outros programas na capital. Viajava toda semana apesar das preocupações dos filhos.

Entretanto depois de alguns meses passou a perder o sono. Os pensamentos não lhe deixavam dormir. Perguntou o que queria a mais. Sem respostas continuou só. Os grupos de amigos virtuais já não tinham mais graça. Tudo turvou em sua volta. Numa manhã deixou o carro numa vaga no centro da cidade e foi ao médico. Os aparelhos de audição não estavam mais sendo eficazes. Ao voltar encontrou duas jovens raivosas que lhe chamaram a atenção. Havia bloqueado a entrada de uma garagem. Não bastou o pedido de desculpas. Entristeceu com o descuido jamais dantes acontecido. De fato estava envelhecendo. Enviaria bombons com mais pedidos de desculpas para as jovens.

Izabel ainda tentava disfarçar sua tristeza. A rua ainda lhe sorria. O frio manso deste ano não afastou as pessoas do convívio diário. Ela nunca se importou com seu envelhecimento. Sempre soubera que se, por um lado o corpo iria murchar, por outro os sentimentos aflorariam e a sabedoria adquirida iluminaria as noites. Os estudos lhe ensinaram que aquilo que há de mais íntimo, a alma como dizem os espíritas ou o inconsciente como dizem os psicanalistas, não caminhava num tempo cronológico, sendo atemporal. E isto explicaria porque ela, no avançar do seu tempo, ainda se sentia como uma menina. Enamorada como fora pela primeira vez.

Era isto! Izabel ainda esperava por seu príncipe encantado. Aquele dos tempos de adolescência daquela rua. E, como nos tempos da adolescência, ele não viera. 


Acabou-se a história. E agora? Perguntou a si mesma.

Os pensamentos tornaram um turbilhão na cabeça. Depois vieram a preguiça e as desculpas para continuar deitada até mais tarde. Sentia que o conforto da casa acolhia sua solidão. Deixou-se ficar à mercê do tempo. Sabia que, quando chegasse a hora, não se furtaria em tomar um outro rumo. Era tempo de aguardar. Um antigo namorado apareceu. Ofereceu flores e convites para um encontro. Izabel não queria. Tratou-o com delicadeza. Agradeceu a orquídea e o convite e não pensou mais nele.

Numa manhã Izabel não quis sair da cama. E se voltasse a ficar desanimada, com apatia e sem vontade de fazer as pequenas coisas que lhe sobraram? Assustou. Não queria ficar assim outra vez. Lembrou-se de uma frase ouvida recentemente: "Antes de tudo é necessário se amar..." Então numa manhã levantou-se calmamente; pegou sua agenda e começou a delinear os primeiros passos para outra mudança. Qual seria agora? Entendeu que o sentimento de outrora que tanto buscava outra vez não estava fora dela. Não estava na rua dela.

Foi quando, passados alguns dias, lhe viera uma onda de ânimo e ela começou por lavar roupas. Era assim que ela recomeçava sua vida; lavando sua alma. Pensou no grande amor da adolescência que ainda nutria seu coração mas que não mais nutria seu corpo. Decidiu deixá-lo à margem. Resolveu que iria construir sua tão adiada casa no campo. Há alguns anos comprara uma chácara próxima aos amigos e aos trabalhos. Era a hora. E mãos à obra.

Quem sabe agora Izabel permitisse que um outro vizinho plantasse flores em seu jardim?


(*) "Jaqueline com Flores" - Picasso 1954

16 comentários:

  1. Parabéns pelo merecido prêmio.
    Onde quer que decida ir ou ficar, conte sempre com a minha amizade. Bj

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  2. Obrigada mas gostaria que você se identificasse. Ok?

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  3. Lindo seu conto. Que este "novo" vizinho colha Lindas Flors neste Jardim!

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    1. Linda sua Arte Visual. Bem sugestiva aquela Arte! Vista maravilhosa do Nosso Jardim.

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  4. Picasso se superou.Nesta temporalidade, elegante e com vista para um lindo Jardim. É digno deste conto para 2019. Só não é sátira!

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  5. Não adianta, hoje acordei na Itália. E Leonardo está procurando confusão com a França. Se render muito, vai continuar virando história entre dois jardins com a mesma escultura fixada nos alpes de Gramado em Santa Catarina. Pelo menos lá as flores deixam a escultura mais vistosa. Comentando aqui porque não estou compreendendo se já comentei antes. Tenho estrabismo, e repito muito a frase: Desculpe-se! E assim vou levando! Bjs

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  6. Parabéns, Rivelli! Pra lá de merecida sua premiação. Que seja uma das várias que ainda vai conquistar. Tudo de bom!Nubia

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  7. Lindo Zarinha! Vc já tem o prêmio natural: a sensibilidade.

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  8. Parabéns! Lindo conto.No momento tbem me sinto como Izabel, tentando encontrar um rumo para a vida.

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  9. Adoro ler seus poemas. Me sinto a personagem. Parabéns!
    Aparecida Ciribelli

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  10. Como sempre, lindo texto que prende o leitor. Particularmente, continuo acreditando que mudar os caminhos não é a solução, é apenas um paliativo. E mudar o jeito de caminhar é muito difícil nessa época da vida. Mas vale a tentativa.

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    1. Obrigada pelo comentário mesmo que tenha sido um tanto desanimador. E quem é você?

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