sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

CRÔNICA DE UMA VIAGEM: UM VÔMITO E UMA FEMINISTA




Se me perguntarem de que maneira gosto de viajar, direi que é de carro, mesmo com todos os perigos que rodeiam em estradas. Sentir o vento, a paisagem, o dentro e o fora, os acontecimentos da viagem, o inesperado.
Recentemente viajei com duas crianças, ambas com sete anos, uma menina e um menino. Era uma viagem um pouco longa, as duas atrás no carro, a mãe de uma delas na direção. Uma das crianças desde pequena sempre enjoou nas viagens, a outra criança passou a enjoar recentemente. 

A menina, talvez porque se acostumou, lida muito bem com essa intercorrência. Vomitar nas viagens não é nenhum problema para ela. Anda sempre com uma toalha e um saco plástico. Nessa viagem a mãe substituiu o saco plástico pelo pote. Diz que o pote era só jogar fora, lavar e estava pronto para seguir viagem sem ter que se preocupar e sem deixar um saco plástico pela estrada.

Já pelo meio da viagem, após as crianças acordarem de um sono restaurador, começamos a brincadeira de falar palavras começadas com letras do alfabeto, uma forma de distraí-los e passar o tempo. Logo o menino começou a sentir-se mal e dizia com grande sofrimento.

-Eu não quero vomitar, eu não vou vomitar.

Os olhos cheios de lágrimas. Um sofrimento de partir o coração, vê-lo com tantas sensações ruins e se segurando para não vomitar.

Eu e a mãe tentando ajudar, enquanto não tínhamos um lugar para parar, dizíamos: Pode vomitar. Isto não é nenhum problema, é só usar o pote.

Por fim, a mãe diz para a menina que está sentada ao lado de seu filho: Ana ajuda ele. Mostra como usa o pote. Nós mulheres temos mais facilidade com essas coisas. Os homens são assim mesmo, temos que ajudá-los, eles não sabem lidar com essas coisas.

O que prontamente ela responde: Mas ele tem que aprender.

Rimos um pouco, embora a situação não fosse muito propicia. Uma estrada cheia, a mãe no volante e eu tentando diminuir o sofrimento de uma criança, o seu nojo frente o seu vômito, antes de encontrarmos um lugar onde pararmos.

Buscando dar um sentido para aquele sofrimento, no automatismo de psicólogo penso, num primeiro momento, ele está precisando aprender a colocar as coisas para fora. Depois fui pensar no sentido daquele acontecimento e na frase poética de Fernando Pessoa, que substitui pelo “ viajar também é pensar.”

Não sei o que aquela menina quis dizer com o “ele precisa aprender”. Aprender que não tem coisas que são de meninos e coisas que são de meninas. Aprender a não ter nojo do seu próprio vomito, do que sai de seu próprio corpo, que tem coisas que precisam ser colocadas para fora. Aprender que os papéis de homens e mulheres já não são os mesmos. São vários possibilidades, qual era o seu sentir naquele momento, não lhe perguntei, não tive acesso, portanto só posso fazer conjecturas.

Mas com certeza levou-me a refletir no momento que vivemos, onde uma onda reacionária de “uma escola sem partido” preconiza não se poder falar inclusive nas questões de gênero.Um retorno a valores de um tempo que já se foi faz sentido no sentir das mulheres do tempo de hoje? Mesmo para uma menina de sete anos? Viajar no tempo pode ser poesia, sonho, saudade e nostalgia de uma realidade que já se foi. Necessário se faz viajar e sentir a paisagem de um tempo real.


Maria José Birro Costa (Colega junto à Oficina de Escrita)

Nove
mbro/2018

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