terça-feira, 4 de junho de 2019

Crônica: MEU COMPANHEIRO DE VIAGEM




                           (*)


Comprei minhas passagens com bastante antecedência. Com a tal cinetose é preciso viajar como um burro de cargas; com viseiras laterais; não que eu pudesse desviar do meu caminho mas quase morro de enjoos e dores de cabeça. Desde muito jovem aprendi que as poltronas ímpares estão na janela e que múltiplos de três estão do lado oposto do motorista. Sabia a posição do sol nas idas e vindas de todos os meus destinos.

Então, como sempre, comprei minha passagem número três apesar do sol estar batendo nela. Entretanto, sendo uma longa viagem, eu pegaria o sol nascendo, veria a estrada e as cidades da minha infância, não teria enjoos e quando o sol virasse eu estaria contra ele.

Mas deixemos minhas manias de viajante para lá pois quero falar do lugar vazio ao meu lado; poltrona quatro. Assim que deixamos a minha amada BH, pulou para a referida poltrona um senhor que certamente beirava sua idade com a minha. Devo dizer que, com minha perda auditiva, tenho grandes dificuldades em entender o que os outros dizem. Sempre olho para quem está falando para ter em meu auxílio os movimentos labiais. Porém, dentro de um ônibus, seria impossível a lateralidade dos meus músculos orbiculares. Eu morreria de dor de cabeça. 

O que fazer?

Desta vez eu queria ouvir as histórias daquele homem simples que estava indo visitar uma irmã em fase final de um CA que lhe consumia a face.
Contou-me que nascera na zona rural de uma cidadezinha próxima a Ponte Nova. (Lamento ter esquecido o nome. Gosto das cidades do interior de Minas). 

Contou-me que desde menino trabalhava na roça ajudando o pai que falecera ainda muito jovem. A mãe também morrera e ele ficou apenas com os quatro irmãos. Os tios ajudaram nesta fase. Não frequentou a escola. Não haviam escolas rurais naquela época. Assinava com o dedo. Depois desse tempo ele continuou plantando. Era só o que ele sabia fazer. Mais tarde saiu da casa dos tios e começou a se empregar numa ou outra fazenda até se tornar adulto. 

Disse-me que gostou muito de trabalhar com um desconhecido que precisava de alguém para limpar as sujeiras dos seus cavalos de estimação. Acabou se dando tão bem com os animais que fora promovido a cavaleiro e treinador. Chegou a viajar para as exposições com seus cavalos famosos. 

Logo que casou veio a mudança para Contagem onde conseguia um ou outro lote para capinar. Ficou alguns anos vendendo laranjas. Apareceu um emprego na construção civil. Os filhos foram chegando. Um encarregado gostou dele e o levou para uma empresa terceirizada da Refinaria Gabriel Passos, em Betim. Concluiu que precisava aprender a ler. Não se intimidou e se matriculou no MOBRAL - lembrei que na minha adolescência ensinei alguns adultos dando aulas neste que foi um grande "Movimento Brasileiro de Alfabetização"- 

E, nesse vai e vem de empregos, chegou seu grande dia. Foi escolhido entre vários outros colegas para fazer uma prova na Petrobrás. Fez e foi aprovado. A empresa o queria em seu quadro de trabalhadores e ele precisava trabalhar. 

Hoje, bem aposentado, conta orgulhosamente que dois filhos estão quase aposentando. (Eu errara na sua idade.) Meu companheiro de viagem estava com quase oitenta anos. Adorava viajar para visitar os irmãos. Estava muito preocupado com a irmã que "já não tem mais recursos e os médicos deram alta para ela voltar para casa"

Chegou o destino do simpático trabalhador brasileiro. Agora não mais anônimo. Sua história, igual a de tantos outros milhões de trabalhadores brasileiros, está carinhosamente registrada por dois ouvidos já ávidos para escutar mais histórias.

Obrigada meu companheiro e que Deus acolha sua irmã com alegria quando sua hora chegar.

Foi um prazer conhecer você.




(*) A foto foi feita por mim da janela do carro no alto da Serra da Mantiqueira nos arredores da cidade de Aiuruoca, no sul de Minas.


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