quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A limpeza de pele.



Júlia estava com os olhos vedados. Deitada de costas, sobre o lençol branco que recobria o fino colchão da maca, ela ouvia a suave música que tocava ali dentro. Decidira aceitar o presente da amiga: uma limpeza de pele. Afinal haveria uma festa e ela queria estar bem aparentada. 
Durante seus quase cinquenta anos lembra que poucas vezes se dera a este luxo. Confessa que adorou o presente. 

A cada massagem a esteticista ia descrevendo as etapas do processo. "Agora é o esfoliante". "Agora é um creme refrescante". "Agora é um calmante para a pele". Mas Júlia gostava mesmo era daquele pequeno instrumento que tirava os cravos. Sempre queria saber se havia algum "milium" a ser retirado. E respondia negativamente quando a moça pergunta se sentia alguma dor. Suas dores sempre foram aquelas foram do corpo.

Em determinada hora Júlia quase adormeceu. A tal máscara refrescante lhe enebriou e ela deixou-se levar para fora de seus sentidos. Neste momento sentiu a presença da sua mãe. Ela estava ali, bem junto dela. Como que acordou-se. Estava assustada. Sempre percebia vultos da mãe passeando por sua casa. Outras vezes corria ao telefone fixo imaginário que, por mais de meio século, permaneceu no mesmo local da casa dos pais. Ora queria pedir-lhe uma receita de bolo ou dos docinhos deliciosos que ela fazia nos aniversários dos netos. Algumas vezes ia ligar para saber como ela estava. Às vezes apenas para ouvir sua voz. Parava no meio do caminho ao lembrar que a mãe já havia falecido há quase vite anos.

Agora, ali, a lembrança da mãe viera acompanhada da sua grande gargalhada. Sem ninguém saber a causa ela soltava sua risada. Parecia algo incontido dentro dela. Só ela sabia porque ria tanto. Mas todos em volta acabavam rindo também. Era uma alegria contagiante.

Enquanto a esteticista esfoliava sua pele, Júlia lembrou da pele do rosto de sua mãe. Era alva, limpa e com os traços bem marcantes. As rugas, quando ainda bem jovem, ao invés de traduzir seus janeiros, davam-lhe suavidade e contavam belas histórias. Jamais fora a um salão de beleza para cuidar de si. Os cabelos negros tinham ondulações precisas. Bastava lavá-los. Eles ficavam do jeito que ela gostava. Júlia nem lembrou quando eles começaram a branquear. Mas lembra deles brancos como a neve.

De vez em quando, ao visita-la, ela pedia que lhe tirasse os pelos do queixo e do buço. E falava rindo que "com mulher de bigode nem o diabo pode". Outras vezes via que ela tentava arranca-los com as pontas dos dedos pois já não os enxergava no espelho. "A vista tá ficando fraca" dizia ela. Nestes raros momentos notava que havia na mãe um resquício de vaidade. Como teria sido ela na juventude?

Júlia não conseguia abraça-la. Sentia que havia uma enorme barreira separando as duas. Entretanto sabia também que era tão amada quanto amava a sua mãe. Cada qual a sua maneira. Mas algo as mantinha distantes. Agora, deitada naquela maca, ainda com os olhos vedados, pode vê-la perfeitamente. Ela era linda. Sabia usar as palavras certas na horas certas. Ela era toda. Completa. Nada lhe faltava naquela vida de parcos recursos e muitos sonhos. Sua fé em Deus lhe bastava.

Mas quando adoecia ficava calada. Seus olhos encovados miravam o vazio. Seus gestos tornavam-se escassos. As gargalhadas não eram mais ouvidas. Suas noites eram longas e sem sonhos. Nesses tempos Júlia adoecia também. Todos adoeciam em torno. Era o tempo da escuridão por toda a casa. Muitos remédios e poucos resultados. A melhora vinha lenta e por si mesma.

Noutros tempos esbanjava alegria. Como a primavera, ela se abria em sorrisos, em coloridos e em muitas palavras. Desabrochava. Então tudo recomeçava. Renasciam todos na casa. A pele voltava a brilhar na sua brancura. Os cabelos teriam de volta as ondulações. E os pelos na face haveriam de ser retirados. Assim fora toda a vida de sua mãe. Talvez ela fosse de lua. Ou quem sabe ela acompanhasse os equinócios e solstícios do hemisfério sul?

Júlia foi retirada de seus devaneios quando a esteticista anunciou a última etapa da limpeza. Ela levantou, foi até o espelho e se aproximou para ver a pele cuidada.

Refletida do outro lado ela viu a imagem da sua mãe num grande sorrindo. Constatou então que jamais seria a mulher que fora sua mãe. Linda. Sem vaidade. E toda mulher.

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