quarta-feira, 10 de março de 2021

A Procissão do Encontro


(Delicadezas em Tempos de Coronavírus - XXXVIII)





















Como por todo interior das Minas Gerais, a cidade de Lafaiete também teve seus áureos tempos de grandes encenações durante a semana Santa. Delas jamais esquecerei. A disputa entre as paróquias, para que cada qual tivesse suas apresentações mais bonitas que a outra, acabava por nos proporcionar grandes encantamentos e emoções.

Eu era ainda muito pequena e não aguentava seguir todo o trajeto das procissões. Ia atrás da minha mãe. Agarrada a ela. Sentindo muito frio dentro de poucas roupas. O frio entrava pelo tecido e cortava minha pele. Às vezes, as mãos adormeciam. O xixi quase escorria pelas pernas abaixo.

Meu pai tocava na banda. Era um acalento naquele frio congelante saber que ele era um importante músico da banda.

Lembro que havia procissões em quase todas as noites. Santa Maria ficava numa igreja e Jesus Cristo noutra. Nas quartas-feiras havia a procissão do encontro. Para mim era o sermão mais bonito de se ouvir. Eu chorava junto com Nossa Senhora ao se encontrar com seu filho carregando a cruz e todo ensanguentado. O padre gritava seu sermão. Falava da dor de Maria ao ver seu filho preso, condenado e açoitado. Não sabia se chorava mais de pena da mãe de Jesus, se chorava de sono, de frio, de fome ou de vontade de fazer xixi.

As procissões eram longas. Subiam e desciam as ladeiras da cidade alta. Duas filas, uma de cada lado. Passos lentos e as ladainhas davam-lhes o ritmo. Sempre havia mais mulheres que homens. Eu observava tudo. Será que as mulheres eram mais piedosas?

Nunca guardei a ordem dos eventos da Semana Santa. Havia a cerimônia do Lava-pés. A crucificação de Jesus. A encenação da decida da cruz nos deixava de olhos vidrados nos movimentos, temendo que deixassem Jesus cair. Não achava tanta graça naquilo. Acho que ficava muito cansada. Sermões tinham toda noite. Havia o sermão das sete palavras que nunca soube quais eram elas. Se soube, já esqueci. Mas, para mim, o mais bonito era o silêncio na procissão do enterro. As velas acesas deixando respingar cera quente nos dedos e nas mãos. De repente ouvia-se um canto noutra língua. Uma única voz potente e estridente chorava uma canção. Enquanto cantava ia desenrolando um pano branco com o rosto de Jesus Cristo com uma coroa de espinhos e gotas de sangue caindo na sua face. Eu chorava baixinho. A voz da Verônica, me contaram o nome dela depois, entrava dentro do meu coração e o dilacerava.

Achava muito esquisito todos os altares ficarem escondidos por imensas cortinas roxas. O altar da igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Lafaiete ainda continua sendo, para mim, um dos altares mais belos que conheço. Todo em rococós dourados, com pinturas em tons rosa e azul claro. O contraste das cores com o dourado torna tudo uma beleza de se ver e admirar. Na Semana Santa ficava tudo escondido. Uma tristeza para mim que amava ficar olhando toda aquela arte dos mestres barrocos de Minas. Muitos anjinhos, santos, santas e até demônios pintados (será que havia demônios ou eles estavam só na minha imaginação?) em cenas bíblicas no teto e nas paredes laterais. As paredes tinham quase um metro de largura. Ficava imaginando se não havia ouro escondido (dos portugueses) entre as paredes.

Os bancos centrais da igreja, durante as missas e outros eventos, eram ocupados pelas pessoas mais importantes da cidade. Roupas de domingo desfilavam pelo centro da mais antiga igreja da cidade. As pessoas de classe inferior e as pessoas negras ficavam nas capelas laterais. A maioria dessas pessoas ficava de pé. Eu, minha mãe, meu pai e meus irmãos, ficávamos de pé encostados nas gigantescas paredes frias. Meu pai costumava encostar também a cabeça na parede.

Penso que, naqueles tempos, embora ainda criança, já sabia qual era meu lugar. Não que me importava ser pobre, mas eu gostaria muito de ficar bem defronte aqueles maravilhosos altares. Entretanto saberia, num futuro próximo, do imenso abismo que ocorria entre as classes sociais, o racismo que escravizou tantas pessoas mesmo após a lei abolicionista, e tudo com pactuação das áreas mais conservadoras da igreja católica.

Os estudos, as leituras, a vivência com minha família e com outras famílias vizinhas, me mostravam o avesso de tudo aquilo. Fui entendendo muita coisa. Talvez, minha família, não quisesse que eu deixasse de ter fé. Mas foi inevitável. A partir desse tempo fui me afastando das missas e orações, não sem muitos atritos com os pais e irmãos. De repente eu me tornava a ovelha negra da família.

Hoje, meio século depois, ainda ouço o canto desesperado da Verônica desnudando o sudário; ainda sinto o cheiro delicioso dos incensos; ainda sinto o corpo congelando do frio; ainda sinto vontade de fazer xixi; ainda tenho um grande orgulho do pai músico.

Mas não compactuo e denuncio sempre os descalabros praticados pelas religiões em nome da fé de um povo cuja ignorância vem sendo mantida para manter a vida farta de seus “pastores”.

Certamente faria tudo outra vez só para sentir as emoções daqueles tempos.

09/03/2021

Fotografias: Gentilmente cedidas pelo lafaetense "garimpeiro de fotos antigas de nossa cidade"  e servidor da Secretaria de Cultura de Conselheiro Lafaiete: Mauro Dutra de Faria. Meu amigo virtual no Facebook a quem muito agradeço.

Observação: Esta crônica é o dever de casa proposto na "Quarta Oficina de Escrita" do mês de fevereiro deste ano com o tema "A quaresma é paciente e dura quarenta dias", ministrada pelo poeta, Ronald Claver.

Considerações de Ronald Claver para o trabalho:

Procissão: Também é uma deliciosa narrativa, vejo como os olhos de hoje/ontem a menina toda doce, ouvindo o sermão e se encantando com o canto de Verônica. Com os santos escondidos por sedas lilases e roxas. A batalha das igrejas em busca da perfeição. Os altares de Lafaiete tão encantadores como místicos. O frio, a vontade de fazer xixi, o medo e o êxtase diante do Cristo crucificado. A igreja é humana e sendo humana padece de imperfeições e abusos. Mas aquela fé que ficou nos passos da menina que se agarrava à saia da mãe continua intacta. Depois vieram os pastores do dinheiro, da cobiça e o encanto de ontem continua, mas o de hoje não existe mais. Parabéns pelos textos e continue escrevendo para delícias de olhos e corações, bjs

3 comentários:

  1. Boas lembranças agente era feliz e não sabia parabéns adimiro seu trabalho

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  2. Muito inspirador esse conto. Voltei à minha infância, lá na cidade de Sacramento, no Triângulo Mineiro. Havia muitas procissões na Semana Santa, os mesmos longo sermões e uma lua cheia sempre iluminando a pracinha da cidade. Os padres pareciam mesmo que gritavam com raiva as palavras dos sermões. Eu era menina e morria de medo do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores. Ficavam guardados nas sacristias da Igreja Matriz e lá era o catecismo das crianças menores (!) , Eu não entrava lá por nada desse mundo, tinha pesadelo com as imagens para o horror da minha avó muito católica. Esse realismo barroco nas imagens ainda me assusta, mas causa admiração. Amei conhecer seu site. Vou consumi-lo todinho.

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    1. Além das delícias da Vovó Regina, ela também escreve poesias. Gostei deveras do seus comentário. e que bom que vai seguir minhas escritas neste blog. Obrigada

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