quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Carta de Amor - 16

 

                                               





Bom dia meu desamor


Atordoada com as questões políticas atuais do nosso país resolvi dar uma pausa e passar um batom. Maquiar um pouco meus lábios que há tanto tempo não se colorem nem se abrem num sorriso ou entre conversas. Levantei dessa escrivaninha companheira e fui até meu batom esquecido no velho estojo. Agora já posso dizer o que há muito está preso e descolorido dentro de mim.

Pois bem, desde que soube “por onde andas e que dizes fazer” caminhei no sentido oposto àquele que até então desejava. No início achei que estava deveras enlouquecendo. Meu peito apertou. Viajei sem rumos. Enlutei minha alma. Mas ainda não chorei. Vivi os últimos meses como uma folha que despenca da árvore e cai leve de encontro ao solo. Despenquei-me de mim. Despenquei-me de nós. Não há palavras que definam meu luto. Eu me perdi de você.

Como você sabe, lemos muito sobre a Rússia. Ainda bem adolescentes lemos “A Mãe” de Máximo Gorki. Na época me envolvi pela luta dos operários russos e ali começava minha paixão pelo país frio e vermelho. Depois devorei quase toda a obra de Dostoiévski e adentrei nas almas de seus personagens pelas ruas de São Petersburgo. Recentemente li “O Adolescente” e, mais uma vez, lembrei-me de você. Anton Tchékhov e Lev Tolstói vieram por indicações do meu filho. E, desde então, tenho viajado para a Rússia nos meus devaneios, entrando na “Era Dourada da Rússia” com seus escritores, acabei ficando por lá.

Então gostaria de lhe dizer que jamais aceitarei, mesmo que isto contrarie senão a mim, que um cidadão como o presidente do Brasil e toda sua comitiva inculta, pise em solo de um país tão meu. E que você, culto e sabedor de todas essas histórias, caminhe junto a ele pela Praça Vermelha e o acompanhe até o Túmulo do Soldado Desconhecido no Kremlin. Isto já se traduz num atentado à minha dignidade e a do povo russo.

Lembrando da citação de Dostoiévski de que “Tenho de proclamar a minha incredulidade. Para mim não há nada de mais elevado do que a ideia da inexistência de Deus. O homem inventou Deus para poder viver sem se matar”, Bolsonaro e tantos de vocês, em nome de Deus, matam, destroem e gozam sobre os cadáveres.

Não posso mais amar você. Entretanto continuarei amando o menino operário que um dia você foi.

Sem abraços.

Rosário Rivelli, 17/02/2022

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