Ele desceu a rua como quem nada conhecia dali. Olhos no horizonte, fixos. Mãos no bolso da calça jeans nada desbotada. Camisa xadrez dos tecidos de algodão de sempre. Andar compassado. Cadernos esquecidos debaixo do braço esquerdo.
Da pequena abertura de cortina, a moça o viu. Quem pensa que a rua dormia na suavidade vespertina de julho não conheceu seus moradores. Por ali moravam querubins, cupidos, elfos, duendes e tantos entes sobrenaturais. A rua vivia dias de mansidão e dias de trovão. Algumas mulheres, sob influências destes seres, saiam de casa a gritar desaforos contra outras mulheres que, supostamente, teriam olhares enviesados para seus maridos ou porque um filho foi ofendido por filhos de outras vizinhas. Até a raiva passar e a normalidade voltar não se falavam nem saiam do lado de fora de suas casas. Ficam moendo e remoendo as palavras ouvidas e ditas. Só não deixavam de ir às novenas e missas das primeiras sextas-feiras de cada mês.
Naquela tarde a rua experimentava um raro dia de paz. As mulheres deveriam estar cuidando das roupas dos filhos, pensando o que fariam para o jantar que seria a marmita do marido na manhã seguinte, ou encostadas num canto da casa com os olhos fechados no descanso. As crianças deveriam estar vendo desenhos na TV colorida que acabara de chegar nas lojas da cidade.
Tereza tinha os olhos ao longe. Sua quietude era apenas um disfarce contra a inquietude dos seus pensamentos.
Naquela tarde havia começado a leitura do livro, “Amor de Perdição” do escritor português Camilo Castelo Branco, e estava envolvida com a história do amor impossível entre os jovens Teresa e Simão.
Parou com a leitura ao sentir o coração apertado dentro do peito. Levantou e, num ímpeto, olhou pela janela. Lá vinha ele. Agora as batidas do seu coração aceleravam à medida que ele se aproximava de sua casa. A moça sentiu sua face afoguear quando viu sendo vista olhando para ele.
Querubins, serafins, elfos, cupidos e tudo quanto havia nas leituras de Tereza, voavam ao seu socorro. Só então se deu conta de que estava sonhando. Abriu os olhos e se viu refletida nos vidros envelhecidos da velha janela de madeira. Estava beirando seus setenta anos. O corpo cansado, as articulações doloridas, a pele ressecada, os cabelos desalinhados, as unhas quebradiças. Então entrou pra dentro dela e se viu a bela menina aos quinze anos sendo amada tal e qual a Teresa do seu livro. Sorriu pra si. Criou asas e voou para dentro do livro.
Fotografia: Arquivo pessoal. Janela em Roma -2019
Maria do Rosário N. Rivelli
Julho/2022
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