quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Crônica: Nome de Santa Madroeira

 


Brás Pires, meu amor, 7 de outubro de 2022


A casa, sempre refeita nova, me acolheu mais uma vez com a mesma delicadeza de outras chegadas.

A tarde estava suave e fresca. Meu olhar foi convocado até a enorme janela do quarto que me foi oferecido na casa. Em poucos minutos a noite iria engolir o dia. Naquele exato momento meu coração disparou. - Nessas horas preciso escrever - Prontamente minha cunhada atendeu ao meu pedido me trazendo folhas em branco. Não poderia perder a inspiração.

Apaguei as luzes do quarto. Queria ver a escuridão.

Lá embaixo o campo de futebol do Independência. A grama estaria verdejante pela bênção das primeiras chuvas. Mais adiante o Rio Xopotó serpenteando duas extensões de terra revoltas. À tarde eu havia ficado ali, observando o trabalho dos agricultores com seus tratores que mais pareciam marujos navegando e singrando a terra com seu vermelho.

Quando a escuridão tomou conta de tudo, debrucei no peitoril da janela. Nem fora preciso fechar os olhos. Inspirei fundo e deixei o aroma da noite penetrar dentro de mim. Cheiro de terra molhada revolta, cheiro de grama e outros cheiros inebriantes de mata no entorno.

Talvez um vinho tinto colorisse a noite. Talvez a noite me deixasse penetrar nos seus segredos mais íntimos e escandalosos.

Bendita noite que me deixou ver algumas luzes do outro lado do Rio. Lá estava a charmosa Várzea, uma extensa região plana, acima da serpente d'água. Havia ido lá pela manhã. Deparei com flores na porta de entrada e, dentro da casa, uma mulher guerreira que não havia sucumbido aos acasos que a vida lhe trouxera. E ganhei abraços.

Voltei para minha janela e olhei à minha direita. Um muro que à tarde havia sido palco das lagartixas imóveis ao sol esperando pelos distraídos insetos.

À minha esquerda, na escuridão da noite, vejo cenas da amiga de infância numa cadeira de rodas. Adoeceu bem pequenina e não andou mais. Tinha nome de anjo. Muitas vezes eu saía de casa para brincarmos juntas. Amava aquele percurso. Será que foi numa dessas vezes que teria encontrado o Leite, mais uma vez, bêbado e esbravejando sobre a ponte de braúnas enegrecidas? Não lembro o que fiz. Certamente havia pensado que morreria naquele momento.

Eu e minha amiga falávamos de amores. Éramos duas adolescentes e nem sabíamos o que era aquilo. Mas falávamos de amor.

Ainda na janela continuava a sentir o cheiro da terra remexida que remexia meu coração. Para onde teriam ido aqueles amores?

De repente as curvas do meu Rio dos Cipós Amarelos trouxe de volta as dores concretas até então trancadas dentro de mim. Cortou-me na carne as lembranças daquelas duas mortes.

A morte de adolescente deveria ser proibida. É estupidez. Assim como a morte de pais jovens que deixam filhos órfãos.

Duas mortes ali bem perto de mim. E elas me amadureceram antes do tempo.

Constatei que os dois tratores abriram a terra para brotar as sementes e, à noite, dois tratores passados encheram meus olhos de água.

E, nesses dias de festas à madroeira, Nossa Senhora do Rosário, me rendi às tradições. Saí pela pequena cidade revisitando meu passado. Reconheci cheiros do passado. Ouvi palavras do passado. Abracei meu passado. Fazia-se preciso reviver meu passado para entender meu agora.

Nessa noite de aromas molhados me encontrei no meu nome de santa:

                           Maria do Rosário

(2 
Estrada, às margens do Rio Xopotó, para a fazenda São José do Porto)

                                   
                                           

(3)
Flores no chão da árvore no meio da estrada.



(4)
"Que é árvore é esta que exala tanto perfume?", foi minha pergunta a um motociclista que passava por ali e parou ao meu pedido.
_ "É a Esperta. O leite dela cura furúnculos"
E me apaixonei pela Esperta




(5)

Encruzilhada. À direita para a Ribeirão de Santo Antônio. E, à esquerda vai para Cipotânea.





(6)
E eis a belíssima Gameleira. Ela reina sozinha e gigante no meio de uma várzea, na estrada para Cipotânea.


(7)
No entroncamento da estrada está a casa do meu Tio João. Ali estava a Fazenda São José do Porto.



(8)
E a Congada vai em direção à igreja de N. Sra do Rosário para saudar e protegê-la.


Agradecimentos:
Nilza Maria Teixeira Nogueira
Maria da Glória Rivelli de Oliveira.

Fotografia: 
- (1)pintura sobre tela da Fazenda São José do Porto.


5 comentários:

  1. Que linda inspiração vinda no lusco fusco, no cheiro da terra, nos sons do congado, nos afetos. Abraço, Bianca

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  2. Eu estava lá e vi. O chão se romper ,a natureza ser o que sempre foi,é e será.
    Um produto dessa magia observa pela janela a arte de viver pra ver.
    Parabéns D. Zarinha!
    Você sou eu.

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