Era o ano de 1978. Eu havia completado 21 anos. A escolha pela psiquiatria vinha desde sempre. Havia convivido com os loucos da minha pequenina cidade. Entre eles, muitos familiares próximos. Acho que a loucura me instigava. Meus olhos vagavam de um a outro, observando suas esquisitices e ouvindo suas palavras nuas e cruas. Tentava entender aquilo. Gostava de ouvir suas histórias.
Três crianças de uma mesma família viviam nas ruas, enlouquecidas. Jogadas fora? Eu pensava. Doía meu coração. Um dia jurei que iria estudar para ser médica e psiquiatra. Impossível jogar crianças fora, haveria um jeito de cuidar delas. Soube então que famílias de lá que acolheram as crianças. Deu casa, escola, carinho, respeito e trabalho aos adolescentes. A. C. uma menina então com sete anos, ganhou uma mãe. Não tinha mais piolhos na cabeça. Tinha vestidinho branco para ir à missa e uniforme para ir à escola.
Ainda secundarista, hoje no ensino médio, o livro “As ideias de Freud”, presente de uma prima, caiu em minhas mãos. Li o livro com avidez embora entendesse quase nada. Mas entendia e via o abandono das pessoas loucas pelas ruas. Nem sempre tinha medo dos enlouquecidos.
Um dia chegou um cadáver na casa da minha tia, perto da minha casa. Não sabia que minha tia tinha um irmão. No caixão um homem esquálido, com barba rala por fazer, poucas flores e uma história. Foi lutar na Itália, ganhou a guerra, ficou louco e foi internado em Barbacena. O hospital devolvia o corpo. Eu ainda não tinha dez anos. Outro louco, vizinho nosso, quando recebia alta em Barbacena, voltava para a casa do irmão. Ele passava várias horas durante o dia ou durante a noite, de pé, sem se mexer, como uma estátua, na praça principal de Lafaiete. Às vezes ficava agressivo e a polícia vinha pegá-lo de volta para o Hospital.
Comecei o curso de medicina da UFJF no ano de 1976 aos 18 anos. Aos 21 anos, cursando o quinto período, comecei a acompanhar psiquiatras de verdade na gigantesca Clínica Mantiqueira, num distrito de Barbacena, hoje cidade Correia de Almeida. Ali aprendi a receber os novos pacientes, a acolher os familiares e a “sedar pacientes agitados”. Ficava de plantão por 48 horas, durante todo um final de semana por mês. As anamneses bem feitas, a letra de professora, a facilidade no trato com trabalhadores e doentes e as cuidadosas prescrições foram os quesitos para que os donos da clínica me requisitassem para mais plantões. Ali conheci psiquiatra formado pela famosa escola de psiquiatria espanhola, conversei com doutores de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro. Mas foi com os pacientes com quem mais aprendi. Aprendi que eles queriam conversar, brincar, cantar e, sobretudo, debochar da minha crueza. Eu estava sempre entre eles.
Em finais de 1980, com as várias denúncias da Colônia de Barbacena que vinham ocorrendo nos jornais, a FHEMIG se viu obrigada a implantar reformas em todo o gigantesco hospital, incluindo estagiários de medicina em todos os dias da semana. Houve um processo seletivo. Fui aprovada. Então, em janeiro de 1981, cursando o último ano da faculdade, ainda com 23 anos, fui para o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena.
Sem carro e sem recursos financeiros eu andava de caronas ou mesmo a pé até a Assistência como era chamado o complexo dos pavilhões, da cozinha, da secretaria, da enfermaria, do necrotério, da capela e de uma casa onde nós, os acadêmicos de medicina, ficávamos. Uma campainha era usada para nos chamar caso houvesse alguma intercorrência. Não havia telefone. Não me lembro dos nomes de todos os pavilhões, mas alguns deles ainda vagueiam dentro da minha cabeça.
No pavilhão infantil era por demais doloroso entrar. Queria pegá-los todos no colo e cantar cantigas de ninar. Seus olhares pareciam ver nada. Ficavam nus, dentro de um único espaço. Alguns tentavam subir nas janelas altas e gradeadas para ver lá fora.
O Pavilhão Zoroastro Passos, talvez fosse um dos primeiros a ser reformado com a instalação de brinquedos de madeira e pneus. Eu, cá comigo, a observar os pacientes que se arrastavam no chão e não conseguiam subir nos brinquedos. Ali era o pavilhão dos aleijados.
O Pavilhão Crispim Jacques Bias Fortes era o mais distante da área central da Assistência. Ele ficava bem próximo do grande portão “dos fundos” que dava para a estrada entre Barbacena e a cidade de Barroso. Ali ficavam os “homens mais perigosos”. Alguns em celas de um metro por um. “Cuidado com aquele ali, não chegue perto dele que ele arranca seus olhos” era o aviso de uma auxiliar de enfermagem para um daqueles que ficavam nas celas. Ali estava um jovem nu, de pé, cabelos compridos, claros e desgrenhados. Lembrou-me um leão. Lembro que não gostava de ir ali.
A cozinha havia virado um SND (Serviço de Nutrição e Dietética)de última geração com mais de cinco mil refeições diárias.
Eu tinha medo do então gerente, Senhor Manoel. Porte militar, duro com os pacientes e funcionários. Havia muito falatório sobre o tanto que ele era mau. Eu tinha medo dele e não ficava na casinha durante a noite. Ia sempre para a enfermaria onde passava as noites conversando com as mulheres internas ou com as trabalhadoras.
Algumas vezes éramos chamados na Colônia, distante três quilômetros do complexo central, a Assistência. Sem ambulância, sem carro, descia a pé pedindo carona. Lá embaixo conseguia ser ainda mais tenebrosos que lá em cima. Ali centenas de mulheres gritavam, outras tantas deambulavam nuas pelos pátios e outras tantas ajudavam na rotina dos pavilhões. Foi ali que conheci Sueli e Flor de Liz. A primeira, loura, muito jovem, esbravejava pelo lado de dentro do pavilhão gradeado. Sueli me chamava atenção pela gravidade de sua voz, pelos gritos de justiça e destilava ódio contra o Sô Manoel. Flor de Liz era morena, mais velha e era uma artista cujas performances sempre exigiam que andasse muito bem vestida e maquiada. Foi nela que vi, pela primeira vez, emendar as unhas com esparadrapo. Ela se recusava a cortá-las.
Ainda hoje sinto o perfume das flores de maio que floresciam às margens da estrada de ferro que cortava a imensa área do CHPB. Lembro da pequena ponte sobre a mesma.
Já escrevi algumas crônicas sobre Barbacena.
Lembro que uma colega não suportou aquilo e, tão logo entrou, pediu para sair.
Depois de cinco décadas, tenho me interrogado sobre o porquê eu ter apagado tantas lembranças daqueles anos de Barbacena, seja dentro da Clínica Mantiqueira ou dentro do CHPB.
Não tenho respostas. Talvez, o instinto de sobrevivência sobrepujasse o que vivia lá.
27/11/2025
P.S. Lembrei-me no depois da crônica escrita e lida que, logo após a residência médica em psiquiatria, fui convidada pela direção da FHEMIG a participar do gigantesco projeto de desospitalização dos pacientes do CHPB. Um grupo interdisciplinar de profissionais da FHEMIG ia, alguns dias em cada mês, para fazer um amplo trabalho na tentativa de desinstitucionalizar aqueles pacientes que, por ventura, pudessem sair dalí.
Observações:
- A foto inicial é a capa do livro "Holocausto Brasileiro" da jornalista Daniela Arbex, lido e trabalhado pelo grupo da Tertúlia Literária de Betim.
- Esta crônica foi lida por mim durante a apresentação do livro Holocausto Brasileiro no encerramento das nossas atividades na Tertúlia de Literatura de Betim, (M.G.) nesta noite de 27/11/2025.
- Por favor, deixe seu nome no final do comentário caso queira fazê-lo.
- Fotos gentilmente cedidas pelos participantes da Tertúlia Literária de Betim cujo encontro aconteceu na noite de ontem, dia 27 de novembro, na Casa da Cultura, em Btim, Minas Gerais.
Livro doído, mas você e Bianca nos mostraram o outro lado. Vocês, com certeza, fixaram a diferença na vida de muitas pessoas ali. Obrigada por compartilhar conosco.
ResponderExcluirObrigada Leni pela sensibilidade. Abraços
ExcluirTanta clareza no escrever e descreve
ResponderExcluirque me trouxe incômodo como se
houvesse presenciado tudo. Raquel
Cheguei a sentir o incômodo como se tivesse estado lá com vocês. Tamanha a clareza no escrever e descrever.
ResponderExcluirFico pensando em quantas histórias a Sra passou,quão grande é tudo isso que viveu diante da diversidades dessas pessoas entre elas Edite Peres e Paulo Sérgio com suas inteligências indomáveis e eu só posso admirar e respeitar a sua história Dra Rivelli. Forte abraço (de Edineia Peres)
ResponderExcluirBelíssimo depoimento, Rivelli, transbordando afeto, solidariedade, trabalho profissional consistente, amoroso, digno de uma profissional humanista e humanizada. Amei ver Cida, Leni, Neide, você e todas participantes. Parabéns pela história de vida e amor ao próximo. ❤️
ResponderExcluirObrigada Márcia. Somos assim mesmo, obviamente, incluo você neste "somos".
ExcluirSimplesmente forte maravilhoso , histórias verdadeiras e impactantes!
ResponderExcluirCertamente você fez a diferença neste contato profissional e muito humano junto a todas essas instituições, incompetentes para lidar com a sua clientela. Barbacena tem, até hoje, esse triste retrato na parede. E como dói!
ResponderExcluirPelo que já ouvi falar deste holocausto impiedoso,você era um anjo socorrista no meio deles .
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