quarta-feira, 17 de dezembro de 2014


UM PRESENTE DE NATAL

   O tempo era das chuvas. Mas também era o tempo do Natal. E as chuvas não davam trégua. E o Natal estava chegando.

   Já não havia roupas para o vestir, nem para as camas e os banhos. Minha mãe ficava nos cuidados da casa, era um leva e trás de roupas da área para o fogão a lenha e dai para o ferro a brasa onde ela acabava de secá-las.

   A área era uma continuação da nossa cozinha e onde minha mãe guardava milho e farelos para as galinhas. Ali também ficava a lenha para o fogo diário e um enorme forno de barro sobre uma armação de madeira. Era de chão batido e telhas de cerâmica feitas na própria região. Nossa cozinha tinha o fogão de lenha mais bem feito que eu conhecia. Era todo vermelho assim como o piso. Mas era naquele forno lá de fora que minha mãe fazia quitandas variadas e deliciosas. As rosquinhas de salamunico eram as minhas preferidas mas ficavam dentro de grandes latas bem fechadas. Elas seriam liberadas para o café depois que todas as outras qualidades já tivessem acabado. E eu ficava esperando até por semanas.

   Havia toda uma ciência no preparo daquelas merendas, assim como no armazenamento e na liberação para os filhos ou visitas. As broas de fubá e os cubus, aqueles assados em folhas de bananeiras, tinham pequeno tempo de sobrevida pois deterioravam mais rapidamente, portanto eram os primeiros a serem servidos. Depois os bolos de farinha de trigo. A seguir seriam os biscoitos assados de polvilho. E, finalmente as deliciosas rosquinhas trançadas e lacradas nas latas de vinte litros. Lembro bem dessas latas. Elas vinham com gorduras, farinhas, leite e mais não sei o quê. Eram enviadas pelo governo americano para alimentar o povo brasileiro que vivia na miséria. Acho que o programa americano chamava "Aliança para o Progresso". Deixemos os americanos para lá.

   Tia Teté, também minha madrinha, sabia como ninguém a arte de fazê-las e trançá-las. As tais rosquinhas ficavam ainda mais gostosas. Ela também fazia os tarecos que pareciam ser feitos da mesma massa, com muitos ovos, muita nata daquele leite de vaca de verdade, farinha de trigo e o salamunico. Muito tempo depois, já nos meus estudos de química, saberia que se tratava de sal amoníaco. Mas as quitandas da minha cidade eram e ainda são feitas de salamunico. E é com esse fermento de nome esquisito que elas se tornam saborosas e inesquecíveis.

   Bem, as chuvas continuaram para nossas alegrias e dos lavradores e para o desespero das mães com tantas crianças e roupas para lavar e secar.

   "Este ano elas resolveram se invernar", dizia minha mãe. 

   Minha rua virava uma enxurrada de lama vermelha e eu ficava imaginando o encontro de tanta água com nosso rio logo ali perto.

   "Será que o rio vai encostar nas traves do gol?" Perguntava meu pai. 

   Outros lembravam de enchentes passadas quando o rio invadia plantações, pastos e até o bonito campo de futebol da minha cidade. Eu só ficava escutando e imaginando aquele mundão de água vermelha.

   E o Natal? Como Papai Noel vai chegar neste fim de mundo se nem tem estrada?

   Meu pai, naquelas noites, à luz de lamparina, contava histórias de Tiradentes, de D. Pedro I, de Portugal. Hoje, eu penso que ele aproveitava aquelas noites e nos ensinava a história do Brasil. Mas as histórias que eu mais gostava eram aquelas da coleção de contos e lendas dos índios da Amazônia e dos fantasmas andantes da floresta. Eu dormia com todos eles dentro do meu quarto. 

   Às vezes ele nos ensinava canções natalinas, tocava flauta ou conversava com os compadres. Falava das cidades por onde andara com seu pai que era caixeiro-viajante.

   E o Natal estava chegando e a chuva continuava...

   Meu pai faz aniversário no dia vinte e dois de dezembro e minha mãe jamais deixou de fazer seu doce predileto, aletria. Sempre com muita canela. Mas o doce de natal que eu mais gostava era a sopa dourada, feita com muitas gemas e pão umedecido ao leite. Ela também preparava doces de laranja-da-terra, de figo, de pêssego. A aletria era encomendada e vinha da cidade vizinha. E todas as frutas eram colhidas no nosso imenso quintal.

   Aquela pergunta não se calava ou seja, as estradas deixarão o Papai Noel chegar? 

   Os poucos carros e seus donos não arriscavam sair pelas estradas que cortavam nossa pequenina cidade. Duas delas serpenteavam o rio e, portanto, estariam tomadas pela cheia. As outras eram em perigosos ribanceiras e morros que ofereciam riscos de acidentes.

   Papai Noel certamente não arriscaria. Era muito perigoso.

   E chegou o Natal. Durante o dia não haveria missas. Mas a noite tinha a Missa do Galo que eu adorava mas cochilava antes mesmo das epístolas. Acabava sempre dormindo no banco duro de madeira até o Amém. 

   Debaixo de chuva e sobre o barro lá fomos nós para a benção do nascimento do Menino Jesus. Meus pais aconselharam que colocássemos nossos sapatinhos debaixo da bela árvore de natal que eles haviam feito.


  "Talvez Papai Noel conseguiria chegar montado num cavalo", disse meu pai.

   A cada ano era uma árvore diferente. Um ano era um galho de pinhão. Outro ano era de jabuticabeira, era a que eu mais gostava. Às vezes era de goiabeira. Eles eram muito caprichosos naqueles enfeites natalinos. Sempre inventavam novidades

   Tá na hora de dormir.Todos os cinco filhos na cama, ansiosos por aquela noite tão esperada. E difícil foi dormir com tanta ansiedade.

   Na manhã seguinte acordamos com um som familiar que via da nossa sala, bem perto de nós.  

  Papai Noel havia passado, ainda tivera tempo para entrelaçar nossos calçados e ali deixara, amarrado, um único presente.

  E fora nosso Natal mais feliz daqueles tempos com o cabritinho berrando e brincando conosco o dia todo. 



27/11/2014


Mais de meio século depois da história deste conto, nosso querido Rio Xopotó tem novamente sua águas extravasadas por toda a região ribeirinha.






PS: Fotos gentilmente cedidas por Vicente Teixeira.
Enchente 15/12/2016.

4 comentários:

  1. Reminiscências da infância, costumes, paisagens, personagens. Você traz também a minha, com suas quitandas, suas águas. Tive um córrego vizinho, você tem o Xopotó, águas das nossas aldeias. Memórias no nosso caminho.

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  2. Reminiscências da infância, costumes, paisagens, personagens. Você traz também a minha, com suas quitandas, suas águas. Tive um córrego vizinho, você tem o Xopotó, águas das nossas aldeias. Memórias no nosso caminho.

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  3. Mamãe, aqui em BH, também fazia rosquinhas de salamunico . Deliciosas!
    Memórias gostosas, Riveli.

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