quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

NOS FUNDOS DA MINHA CASA



                    NOS FUNDOS DA MINHA CASA

  Nunca soube dizer se o lote da minha nova casa tinha os trezentos e sessenta metros quadrados do padrão das cidades grandes. No interior nosso quintal descia até o rio. Era uma imensidão. Mas nesta casa eu achava nosso terreiro muito pequeno, talvez porque os terrenos das casas vizinhas fossem até a outra rua, lá embaixo. Já os fundos da minha casa terminavam logo ali onde havia um muro de placas como se usava naqueles anos sessenta. Eram da cor cinza e em três placas horizontais que se ajustavam umas sobre as outras. Aquilo era muito feio. Mas a divisa do nosso terreiro guardava um tesouro.

 Minha mãe, a princípio nos deixava ir até lá, mas só de vez em quando. Havia a parede de um barracão escuro que funcionava como um muro na terça parte do lote. Ele fazia divisa conosco e com a vizinha abaixo, dando-lhe as costas. Havia uma porta e uma janela que abriam para um terreiro sempre muito limpinho. Tinha uma cisterna de onde se tirava água para a lida diária daquela pequena casa. Havia também um minúsculo banheiro, todo  ele feito de tábuas e coberto com folhas de zinco.

   E havia uma moradora: Dona Tiana. Eu vivia às escondidas olhando aquela mulher. Era muito velha, alta, negra e de raros dentes. Fumava um cigarro feito de papel de enrolar pão e exalava forte cheiro de fumo. Andava com um pano puído cobrindo os cabelos crespos, esbranquiçados e trançados.Vestia sempre vestidos compridos ou saias superpostas.Tudo nela me inspirava quietude, sabedoria e mistério. Parecia que sua solidão lhe era muito querida. Às vezes me pegava imaginando aquela vida cheia de rotinas tão iguais e me via no lugar dela.

  Mamãe dizia para nunca chegarmos naquele muro. Eu ficava por entender tanto zelo. Não entendia tal procedimento de minha mãe. O que aquela mulher teria pra tanta precaução? Seria uma doença contagiosa? E eu, sempre que conseguia, escapava até aquele território proibido.

  Muito raramente Dona Tiana recebia a visita de uma mesma mulher. Era a proprietária do lote e do barracão. Essa mulher dirigia também o asilo de velhos e loucos lá pra baixo dali. Dona Perpétua era uma mulher de decisões e comandos. Dava ordens como se a outra pensasse que fossem conselhos. Plantava  milho, feijão e cuidava de tudo naquele seu território compartilhado. Sem chegar muito perto da inquilina.

  Dona Tiana gostava muito de cantar. Em outros tempos ela acordava muito cedo e falava sozinha o dia todo. Parecia esbravejar como se houvesse interlocutores visíveis somente por ela. Acho que ela vivia num mundo de outras pessoas. Ela era assim, muito esquisita, mas me parecia uma pessoa feliz e dona de seu querer.

  Mas como nem tudo são flores no quintal de Dona Tiana, chegou outra para morar no cômodo pareado com seu barracão. Foi então que minha mãe proibiu de vez que chegássemos até lá. Fez meu pai mudar a cerca do galinheiro de modo a dificultar nossa chegada até o muro. E eu continuava a perscrutar.

  Tratava-se de Conceição, uma mocinha de dezesseis que vivia sob os cuidados de Dona Perpétua, já que sua mãe era louca e vivia presa num dos quartos do enorme asilo. Conceição esperava um filho. Fora abandonada por todos. Tinha que pagar pelo mal feito. Eu então esperava minha mãe sair de casa e lá ia eu levar-lhe pedaços de bolo, pão e palavras de amizade. Costurei algumas peças para a criança e fiz sapatinhos de crochê. Acho que minha família nunca soube desse meu atrevimento.

  Quem não gostou nada disso fora Dona Tiana que enlouqueceu de vez. Teve seu santuário contaminado pelo pecado e haveria de ouvir choro de criança no seu silêncio sagrado. As duas mulheres passaram a brigar sem outras violências senão nas palavras. Parecia que Dona Tiana falava e xingava uma pessoa invisível. Ela não olhava a outra. E a outra permanecia no seu abandono. Era só barriga e solidão.

  Dentro da minha casa havia uma regra: não se podia falar daquela moça. Tudo era pecado. Mas meu Deus era complacente e nós dois vivíamos em paz com o feito da Conceição.

  Eis que numa madrugada acordo com minha mãe sobressaltada. Ela chamava minha tia Vivi que passava uns dias conosco. Da porta da minha casa se ouvia muitas vozes. Minha mãe não deixou que os filhos saíssem dos quartos.

  Era Conceição que, sentindo as dores do parto, saíra de seu ninho e fora para a rua. Andara muito. Subira uma grande ladeira.Gritava e chorava e pedia ajuda. Dera uma enorme volta pelos fundos de sua rua e veio cair no passeio da minha casa. Ela sabia que meu pai e seu carro acolhiam a todos os doentes e os levavam para o hospital.

-"vocês usam a tesoura e não devolvem para o lugar dela"

  Era minha mãe agitada procurando por aquele instrumento cortante e tão importante naquela hora. 

  A  criança nascera ali. 

  Ouvi  seu choro e senti todas as dores do mundo no meu corpo. Então meu pai pegou a mãe e a criança com ajuda dos vizinhos, colocou as duas dentro de nossa Rural e levou-as para a maternidade.

 Agora já seriam três gerações nos fundos da minha casa para o desespero da minha mãe e para minha observância.

  E eu ficaria a espreitar uma louca, uma pecadora e um anjo dividindo um pequeno barracão nos fundos da minha casa. 

16/12/2014

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