quinta-feira, 25 de junho de 2015

"CONHECE-TE A TI MESMO"





                               "CONHECE-TE A TI MESMO"


   Lúcio continuava com seus pensamentos diversos, mas todos sob seu rígido controle. Não lhe permitia nenhum tempo para o pensar sobre si. Ainda na juventude escolhera estudar filosofia. Sócrates, Platão, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho e tantos outros grandes pensadores eram seus companheiros dia após dia. Não era um moço vistoso mas era um moço cheio de sonhos e isto o tornava belo. Não lhe faltavam colegas desejosas do seu convívio e do seu amor. Mas nosso jovem filósofo sempre tinha amores secretos. Alguns ele trouxera da sua adolescência, outros ele encontrou por suas andanças ainda como estudante no interior e hoje, pelas aulas na faculdade.


   Mas Lúcio iniciara uma paixão arrebatadora pela escola que o acolhera em seu curso tão disputado. Agora andava pelas ruelas em volta e, a cada dia, ariscava por uma nova alameda, um novo bar, uma nova amiga. Os parcos recursos advindos do pai, operário numa construtora civil, ele gastava como favas contadas. Nunca fora extravagante. Conhecia sua linhagem, seu lugar social e familiar, e buscava ser mais do que fora possível até então. 
   
   A filosofia seria o caminho que o conduziria ao norte desejado. Muito cedo seus conhecimentos e seus esforços foram reconhecidos pela comunidade docente que o convidara a fazer monitorias. E Lúcio caminhava a passos largos naquilo que lhe chegava de projetos. Às vezes estudava até o amanhecer. Abria a janela para sentir os primeiros raios do sol invadirem seu quarto e dourarem seu corpo. 
   
   Numa dessas noites resolvera deixar os estudos e telefonara para a colega que sabidamente estava enamorada dele. Saíram sem rumo. Após um papo filosófico de boteco ele a convidou para ir até sua república onde tinha um quarto só seu. 

   E para lá foram os colegas em risos e folguedos de amor. Letícia gostara do seu colega desde o início do curso. Ele nunca aproximava. Mas ela esperara por aquele momento com paciência. Sabia que ele viria. 

  No quarto dele apenas uma cama de solteiro e uma escrivaninha com muitos livros, minuciosamente arranjados. Após trocas de beijos e muitas carícias, ele ajudou-a se despir. Ficaram juntos durante toda a madrugada.
   
   Na manhã seguinte eram novamente apenas dois colegas de faculdade embora a moça desejasse mais que isto. No mês seguinte Letícia lhe procurou para dizer que estava grávida. No inesperado do encontro não se preocuparam senão com o desejo do sexo. Lúcio apenas escutou. Ela chorou, sentiu-se desamparada e foi embora. Duas semanas depois o colega foi-lhe encontrar na saída do restaurante universitário. Sem cuidados ou pudores o rapaz lhe propôs fazer o aborto. Já havia conseguido o dinheiro e a indicação de uma clínica clandestina numa cidade próxima. 

  No dia marcado ele a levou, esperou o procedimento ilegal e voltaram juntos; cada qual para seu quarto. Não disseram uma só palavra. Não havia filósofos que pudessem explicar a dor de Letícia. Nenhuma teoria filosófica dava conta de nomear o que ela sentia. Com o passar dos dias Letícia foi perdendo o interesse pelos estudos. Não conseguiu concluir o semestre e foi desaparecendo até deixar de ser vista na escola. 

  Lúcio continuou impassível e invulnerável. Nada abalaria aquilo a que havia proposto para si. Continuou brilhando em seus estudos. Outras namoradas vieram e se foram. De vez em quando, a lembrança de Sara lhe vinha nos pensamentos. Foram amigos na adolescência e soubera que ela havia se casado. Vivia numa cidade distante. Certamente ele se negava àquela lembrança. Era sua defesa contra um possível desarranjo do gostar. Teria amado sua amiga naquela época. 

  Entretanto passado algum tempo, durante o período de férias, já enquanto professor efetivo numa grande escola, fora para sua cidade e procurara noticias de Sara. Ela estava grávida de seu primeiro filho. Uma inquietação tomou conta daquele jovem tão filosoficamente perdido na vida. Nos seus devaneios lembrou-se de Letícia. Conseguiu o telefone de Sara e ligou para ela. Queria vê-la. Haveria de ir até sua cidade.

  Sara reconheceu a voz do amigo e aceitou o convite para um jantar. Lúcio chegou mais cedo, escolheu a mesa e aguardou-a impacientemente. Os tempos eram outros. E logo ele viu-a descer de seu luxuoso carro amparada pelo porteiro do restaurante escolhido. Estava bela. Ele prestou atenção em cada detalhe. Ela trajava um vestido com listras verdes e brancas, elegantemente adequado para seus oito meses de gravidez. Havia uma gravata de cetim vermelha no encontro de uma exagerada gola quadrada.

  Ao sorriso dela, Lúcio acordou de seu encantamento, puxou-lhe a cadeira, ajudou-a sentar-se confortavelmente e lhe sorriu de maneira conhecida por ela. Ela o amara muito mas já não lhe doía o desfecho daquele namoro. Ele a deixara por uma outra mulher. Muitos anos mais tarde ela soubera que fora trocada não por um novo amor mas por um capricho tolo da adolescência. E sofrera muito. Gostara dele mais do que dela. Conseguira dar a volta por cima e trabalhava numa grande empresa automobilística. Havia apaixonado por outro homem e tinha se casado.

   Lúcio não conseguiu disfarçar seus olhares para aquela mulher tão linda e tão completa de vida. Comprou-lhe uma rosa oferecida pelos meninos da noite e foi todo cuidadoso. Aquele casal tinha muito o que conversar. Sara falava de seu filho que nasceria no próximo mês e perguntava se ele tivera filhos. Afinal já havia se passado quase seis anos desde o último encontro. Lúcio emudeceu. Perdera seu dom do discurso. Convocara seus inúmeros filósofos. Porém logo retomara o rumo e conseguira dizer da surpresa de vê-la naquele momento tão sublime.

  Acabaram o jantar. Sara, gentilmente agradeceu o convite. Desejou-lhe felicidades e se fora com a rosa nas mãos e um filho na barriga. Lúcio ficara ainda por mais um tempo. Fazia-se necessário colocar os pensamentos em ordem. Desistiu. Pagou a conta. Levantou, entrou no seu carro e partiu de volta para sua cidade.

  Na estrada lembrou de um de seus pensadores preferidos, Santo Agostinho, que teria dito " Fazei o que eu fazia quando estava na Terra: no fim do dia, interrogava minha consciência, passava em revista o que havia feito e me perguntava se não havia faltado com o dever, se ninguém tinha do que se queixar de mim. Foi assim que consegui me conhecer e ver o que havia reformado em mim".

   Então o brilho da lua cheia iluminou algumas lágrimas que rolaram pela face de Lúcio. Pela primeira vez ele chorou pela mocinha deixada lá trás e pelo filho que não tivera. 

 

12/06/2015


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