terça-feira, 15 de março de 2016

 Crônica: Depois de ontem


Nunca entendi porque éramos tão pobres. Meu pai sempre trabalhara muito. Era um homem por demais inteligente e se virava quando o assunto era política. Foi assessor e secretário de políticos famosos da região. Foi funcionário público estadual de carreira da administração fazendária do estado de Minas Gerais. Gostava do que fazia. Sempre nos contava como era procurado pelo povo para ajudar-lhes naquilo que eram suas atribuições, ou seja, guias e documentos fiscais.






Foto de baixo: Av Paulista- SP-ontem, dia 15/03/2017.


   Ele chegava em casa com a alegria do dever cumprido e o cansaço de oito horas de trabalho diário. Minha mãe sempre o poupava dos dissabores domésticos.



   À noite ia para os rotineiros ensaios da banda, ou do coro da igreja ou do grupo de seresteiros. Pedia à minha mãe que o escutasse na rádio quando algumas apresentações eram transmitidas ao vivo. Ela sempre distinguia o som da flauta, outras vezes do bombardino ou do trombone. Ele tocava um instrumento de acordo com a necessidade e transcrevia as letras musicais para todos os instrumentos da banda. O maestro sempre pedia tal favor e meu pai jamais negava. 



   Aprendera música ainda no início da adolescência, quando fora morar com o irmão mais velho que formou em farmácia e se casara com uma professora. Minha avó quase desistira da educação daquele filho danado de difícil. Certamente fora a música quem o educara. E a cunhada fora a grande mestra.



   Então meu pai tinha um salário fixo e este não dava nem até o meio do mês. Minha mãe plantava verduras, criava galinhas e fazia todo o serviço da casa. Nós ajudávamos. Os filhos homens foram trabalhar assim que cresceram um pouquinho. E eu não entendia porque tantas dificuldades financeiras.



   Ouvia meu pai falar da grandeza do nosso país. Das riquezas minerais. Das florestas e das colheitas sempre recordes na agricultura. Convocava todos os filhos para assistir os programas semanais do repórter Amaral Neto, na Rede Globo, quando ele exaltava as obras monumentais feitas pelo governo. Ele se imbuía de admiração pelos presidentes militares. Exigia que os filhos cortassem os cabelos conforme mandavam os figurinos televisivos. Mas ele nem se perguntava por que nos faltava dinheiro para uma vida digna. Parecia que ele vivia a vida dos outros; aquela que a TV nos mostrava.



   Com o passar dos tempos e das dificuldades, meu pai apareceu com fortes dores no estômago. O irmão farmacêutico logo disse tratar-se de uma úlcera gástrica. As dores não melhoravam. Minha mãe achava que podia ser aquela doença ruim. E foi a partir de então que começamos a levar-lhe um copo de leite no meio de toda tarde. Um dia era eu quem levava e noutro dia era minha irmã. E assim alternávamos a caminhada com o leite que quase sempre escorria pelo caminho. E muitas dificuldades passamos por esse tempo. Ainda éramos duas crianças.



   Não entendia como os colegas do meu pai enricavam e ele não. Vivia pedindo dinheiro emprestado a juros altos e, na hora de pagar, nunca tinha o tal do dinheiro. Lá ia ele reformar o empréstimo. Por esses dias a úlcera no estômago doía tanto que chegava a lhe ofuscar o brilho no azul dos olhos. 



  Eu via, ouvia e sentia tudo aquilo calada. Não havia palavras que dessem conta do que eu queria dizer. As dúvidas eram muitas.



  Como o meu país que é tão rico e nos deixa faltar tanto? Algo deveria estar errado. 


   Hoje, passados tantos anos, tenho muitas respostas. Meu pai via nosso país pelas lentes de uma TV que era paga para seduzir o povo brasileiro e deixá-lo alienado daquilo que realmente acontecia por detrás de tanta beleza e feitos faraônicos.

  Ele, que fora eleito democraticamente prefeito na cidadezinha que tanto amava, Brás Pires, no interior de Minas Gerais ainda em 1959, se vira obrigado a deixar o cargo e fazer outra escolha na vida. Entretanto, jamais abandonou o povo que o elegera e o respeitava.

  Nos anos seguintes, muitas mudanças no cenário político brasileiro iriam acontecer. Em 1963, saímos do interior. Foi por estes tempos que a tal doença ruim aparecera no estômago.

   Com sete filhos menores e sem perspectivas futuras, apenas o silêncio e a dor como companhias. Não fosse o som de seus instrumentos e ele teria perecido. Aos filhos restaram a obediência e a esperança num futuro obscuro. Os irmãos se refugiaram em seminários. Algum deveria ser padre tal como o tio.



   Eu comia literatura. Botei na minha cabeça que estudaria em Juiz de Fora, já que ir para a capital era coisa de filhos de ricos. Meu pai anunciou que não poderia ajudar, mas que daria seu apoio, seu carinho e que esperaria melhoras salariais para uma efetiva ajuda financeira. E durante dois anos dei aulas particulares, juntei dinheiro e fui...



   Então a universidade me acordou de um sono profundo e escutei e vi coisas inimagináveis. Era a ditadura. Eu fui para o meio do furacão e aprendi e vivi tudo fora daquelas lentes tão maravilhosas. A universidade me resgatou de um sonho falso e perigoso. Vi colegas nascidos em berços dourados lutando por igualdade social, defendendo causas de trabalhadores. Assisti mestres médicos "fardados" aplicando provas aos sábados para prejudicar colegas adventistas. E estes, meus colegas ficarem para trás no nosso já tão difícil curso. Assisti crianças morrendo sozinhas por não existirem políticas públicas de saúde que possibilitassem aos pais acompanhar os filhos em leitos hospitalares. 
   
  Definitivamente aquilo não era o meu Brasil.

  Eu assistia tudo calada. Angustiada. Recuada. Amedrontada. Acovardada.



   Corri de PMs e cachorros treinados no debut da Dita em 31 de março de 1979. Acho que ainda nem sabia do perigo que corria, mas eu corria.



   E meu pai com sua sua úlcera? Não podia dar-lhe mais desgostos.


  Minha turma de cem valentes estudantes deu muito trabalho naqueles tempos. A intervenção americana desnudava nossos corpos fragilizando nossas almas. Escancarava nossos limites e ameaçava nossos futuros. 



   E quase não formamos diante de nossa recusa aos paraninfos "fardados". Escolhemos como patrono o cadáver anônimo. Formamos médicos no auge da ditadura e apesar dela.



   Passados 35 anos desse tempo tenebroso, mais uma vez, temos o povo brasileiro vendo o Brasil pelas lentes de uma TV. E não se trata de qualquer uma TV, mas aquela mesma que serviu a Dita tão Dura.



   E a danada da dor da úlcera do meu pai acabou. As dívidas foram sanadas. Chegara um novo tempo. Porém as minhas dores começaram. Mas naquele tempo eu apenas soube senti-las. Eu era parte do povo ignorante e seduzido. 



   Hoje voltei a sentir aquelas dores que rasgam meu peito e sufocam meus sonhos. E sei que continuarei sempre chorando de dor por um povo que não sabe sobre o seu querer.





14/03/2016 PS.: Ainda sob os efeitos das manifestações de ontem e com apoio dos filhos Francisco e Clarice e do sobrinho tão querido, Domingos Rivelli, hoje prefeito reeleito na cidadezinha de Brás Pires.

16/03/2017 Mais uma vez esta crônica me veio à cabeça. parece ter sido escrita hoje. Por isto a republicação.

Avenida Afonso Pena: dia 15/03/2017



Brás Pires MG dia 15/03/2017



Um comentário:

  1. Revisitar nossa historia à luz da história sociopolítica é um exercício muito importante para destacar que somos sujeitos da história e sem memória ficamos repetindo os mesmos erros... Grata Juni@

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