Crônica: Depois de ontem
Nunca entendi porque éramos tão pobres. Meu pai sempre
trabalhara muito. Era um homem por demais inteligente e se virava quando o
assunto era política. Foi assessor e secretário de políticos famosos da região.
Foi funcionário público estadual de carreira da administração fazendária do
estado de Minas Gerais. Gostava do que fazia. Sempre nos contava como era
procurado pelo povo para ajudar-lhes naquilo que eram suas atribuições, ou
seja, guias e documentos fiscais.
Ele chegava em casa com a alegria do dever cumprido e o cansaço de
oito horas de trabalho diário. Minha mãe sempre o poupava dos dissabores
domésticos.
À noite ia para os rotineiros ensaios da banda, ou do coro da
igreja ou do grupo de seresteiros. Pedia à minha mãe que o escutasse na rádio
quando algumas apresentações eram transmitidas ao vivo. Ela sempre distinguia o
som da flauta, outras vezes do bombardino ou do trombone. Ele tocava um
instrumento de acordo com a necessidade e transcrevia as letras musicais para
todos os instrumentos da banda. O maestro sempre pedia tal favor e meu pai
jamais negava.
Aprendera música ainda no início da adolescência, quando fora morar
com o irmão mais velho que formou em farmácia e se casara com uma professora.
Minha avó quase desistira da educação daquele filho danado de difícil.
Certamente fora a música quem o educara. E a cunhada fora a grande mestra.
Então meu pai tinha um salário fixo e este não dava nem até o meio
do mês. Minha mãe plantava verduras, criava galinhas e fazia todo o serviço da
casa. Nós ajudávamos. Os filhos homens foram trabalhar assim que cresceram um
pouquinho. E eu não entendia porque tantas dificuldades financeiras.
Ouvia meu pai falar da grandeza do nosso país. Das riquezas
minerais. Das florestas e das colheitas sempre recordes na agricultura.
Convocava todos os filhos para assistir os programas semanais do repórter
Amaral Neto, na Rede Globo, quando ele exaltava as obras monumentais feitas
pelo governo. Ele se imbuía de admiração pelos presidentes militares. Exigia
que os filhos cortassem os cabelos conforme mandavam os figurinos televisivos.
Mas ele nem se perguntava por que nos faltava dinheiro para uma vida digna.
Parecia que ele vivia a vida dos outros; aquela que a TV nos mostrava.
Com o passar dos tempos e das dificuldades, meu pai apareceu com
fortes dores no estômago. O irmão farmacêutico logo disse tratar-se de uma
úlcera gástrica. As dores não melhoravam. Minha mãe achava que podia ser aquela
doença ruim. E foi a partir de então que começamos a levar-lhe um copo de leite
no meio de toda tarde. Um dia era eu quem levava e noutro dia era minha irmã. E
assim alternávamos a caminhada com o leite que quase sempre escorria pelo
caminho. E muitas dificuldades passamos por esse tempo. Ainda éramos duas
crianças.
Não entendia como os colegas do meu pai enricavam e ele não. Vivia
pedindo dinheiro emprestado a juros altos e, na hora de pagar, nunca tinha o
tal do dinheiro. Lá ia ele reformar o empréstimo. Por esses dias a úlcera no
estômago doía tanto que chegava a lhe ofuscar o brilho no azul dos olhos.
Eu via, ouvia e sentia tudo aquilo calada. Não havia palavras que
dessem conta do que eu queria dizer. As dúvidas eram muitas.
Como o meu país que é tão rico e nos deixa faltar tanto? Algo deveria
estar errado.
Hoje, passados tantos anos, tenho muitas respostas. Meu pai via nosso país pelas lentes de uma TV que era paga para seduzir o povo brasileiro e deixá-lo alienado daquilo que realmente acontecia por detrás de tanta beleza e feitos faraônicos.
Ele, que fora eleito democraticamente prefeito na cidadezinha que tanto amava, Brás Pires, no interior de Minas Gerais ainda em 1959, se vira obrigado a deixar o cargo e fazer outra escolha na vida. Entretanto, jamais abandonou o povo que o elegera e o respeitava.
Nos anos seguintes, muitas mudanças no cenário político brasileiro iriam acontecer. Em 1963, saímos do interior. Foi por estes tempos que a tal doença ruim aparecera no estômago.
Com sete filhos menores e sem perspectivas futuras, apenas o
silêncio e a dor como companhias. Não fosse o som de seus instrumentos e ele
teria perecido. Aos filhos restaram a obediência e a esperança num futuro
obscuro. Os irmãos se refugiaram em seminários. Algum deveria ser padre tal
como o tio.
Eu comia literatura. Botei na minha cabeça que estudaria em Juiz
de Fora, já que ir para a capital era coisa de filhos de ricos. Meu pai anunciou
que não poderia ajudar, mas que daria seu apoio, seu carinho e que esperaria
melhoras salariais para uma efetiva ajuda financeira. E durante dois anos dei
aulas particulares, juntei dinheiro e fui...
Então a universidade me acordou de um sono profundo e escutei e vi
coisas inimagináveis. Era a ditadura. Eu fui para o meio do furacão e aprendi e
vivi tudo fora daquelas lentes tão maravilhosas. A universidade me resgatou de
um sonho falso e perigoso. Vi colegas nascidos em berços dourados lutando por
igualdade social, defendendo causas de trabalhadores. Assisti mestres médicos "fardados" aplicando provas aos sábados para prejudicar colegas adventistas. E
estes, meus colegas ficarem para trás no nosso já tão difícil curso. Assisti
crianças morrendo sozinhas por não existirem políticas públicas de saúde que
possibilitassem aos pais acompanhar os filhos em leitos hospitalares.
Definitivamente aquilo não era o meu Brasil.
Eu assistia tudo calada. Angustiada. Recuada. Amedrontada.
Acovardada.
Corri de PMs e cachorros treinados no debut da Dita em 31 de março
de 1979. Acho que ainda nem sabia do perigo que corria, mas eu corria.
E meu pai com sua sua úlcera? Não podia dar-lhe mais desgostos.
Minha turma de cem valentes estudantes deu muito trabalho naqueles
tempos. A intervenção americana desnudava nossos corpos fragilizando nossas
almas. Escancarava nossos limites e ameaçava nossos futuros.
E quase não formamos diante de nossa recusa aos paraninfos "fardados". Escolhemos como patrono o cadáver anônimo. Formamos médicos no auge
da ditadura e apesar dela.
Passados 35 anos desse tempo tenebroso, mais uma vez, temos o povo
brasileiro vendo o Brasil pelas lentes de uma TV. E não se trata de qualquer
uma TV, mas aquela mesma que serviu a Dita tão Dura.
E a danada da dor da úlcera do meu pai acabou. As dívidas foram
sanadas. Chegara um novo tempo. Porém as minhas dores começaram. Mas naquele
tempo eu apenas soube senti-las. Eu era parte do povo ignorante e
seduzido.
Hoje voltei a sentir aquelas dores que rasgam meu peito e sufocam
meus sonhos. E sei que continuarei sempre chorando de dor por um povo que não
sabe sobre o seu querer.
14/03/2016 PS.: Ainda sob os efeitos das manifestações de ontem e com apoio dos filhos Francisco e Clarice e do sobrinho tão querido, Domingos Rivelli, hoje prefeito reeleito na cidadezinha de Brás Pires.
16/03/2017 Mais uma vez esta crônica me veio à cabeça. parece ter sido escrita hoje. Por isto a republicação.
Avenida Afonso Pena: dia 15/03/2017
Brás Pires MG dia 15/03/2017
16/03/2017 Mais uma vez esta crônica me veio à cabeça. parece ter sido escrita hoje. Por isto a republicação.
Avenida Afonso Pena: dia 15/03/2017
Brás Pires MG dia 15/03/2017
Revisitar nossa historia à luz da história sociopolítica é um exercício muito importante para destacar que somos sujeitos da história e sem memória ficamos repetindo os mesmos erros... Grata Juni@
ResponderExcluir