O tempo lá em casa era das vacas magras. Havíamos mudado fazia pouco tempo para aquela cidade grande. Os novos costumes exigiam cuidados e sacrifícios de todos nós, os sete filhos de meus pais. O mais novo nasceria no final daquele mesmo ano de nossa chegada. E ainda havia outro que completaria um ano no mesmo mês do nascimento do esperado. Eu estava com seis anos e já havia sido matriculada no Grupo Escolar assim como minha irmã mais velha um ano que eu. Nós duas éramos de julho. Eu mais gordinha e clara e ela magrinha e morena.
Esta escadinha de filhos não parava por aí. Depois vinham os dois irmãos mais velhos com diferença de um ano para outro e, por último a irmã mais velha que reinou sozinha por três anos. Sabíamos que minha mãe vivia adoentada nos primeiros anos de casada e tivera abortamentos espontâneos. Os natimortos? Ela nos falava desses filhos. Nos contava seus nomes. Nosso pai falava de como havia sido os enterros daquelas criancinhas desnascidas. Não lembro mais todos os nomes. Na verdade, foram quatro os filhos que não vingaram. Mas sempre os acrescentávamos a nossa lista de irmãos. Parecia que eles sempre estiveram conosco. Éramos portanto onze filhos.
Passadas as dificuldades dos primeiros meses na cidade nova, meu pai nos disse que seria necessário o esforço de todos nós na manutenção da casa. As meninas ajudariam nos afazeres domésticos. Os dois irmãos mais velhos iriam trabalhar no comércio. Entretanto nenhum de nós deveria deixar os estudos. Meu pai dizia e repetia que sua herança para nós seria os estudos e nos contava vários exemplos de heranças jogadas fora pelos filhos e netos. Falava que o conhecimento ninguém jamais tiraria de nós. Teríamos que trabalhar e estudar com afinco.
Mas deu que meu irmão mais velho não conseguiu ser aprovado naquele ano. Acho que ele tinha outros motivos que não o desinteresse pelos estudos. Ele era muito tímido e de poucos amigos. E a transferência para uma cidade grande deixou-o ainda mais retraído. Afinal éramos da roça. Capiaus. Meu pai falou. Pediu mais compromisso, ficou nervoso quando viu o boletim salpicado de riscos vermelhos e fez severas críticas ao filho. Nada adiantou. Meu irmão foi reprovado. Fora a primeira reprovação de um filho na escola. Minha mãe era mais condescendente. Acho que ela entendia melhor os motivos.
Enquanto isto o irmão mais novo ficava com suas artimanhas se divertindo e tripudiando com a desventura do outro.
Chegado o ano seguinte João deveria repetir o ano. Estava crescendo muito e a vergonha também crescia junto. Estava ficando rapazinho e ainda no Grupo Escolar. Ele pediu que fosse transferido para a noite e para outra escola. Ainda não tinha idade para o turno da noite.
Vieram as primeiras notas. Vermelhas. E meu pai decidiu que, já que ele não queria estudar, agora teria que trabalhar, estudar e tirar notas boas.
E meu irmão, com onze anos, iria entregar marmitas aos mineiros do Morro da Mina, bem distante da nossa casa. Era uma mina de extração de manganês. Lá de casa ouvíamos os estrondos das explosões das dinamites e logo víamos a poeira levantada naquelas montanhas que morriam lentamente.
Havia uma trilha que tornava o caminho mais perto. Era um caminho ermo e ficava muito longe da única estrada que dava acesso àquela região. Ainda cedo ele buscava as marmitas nas casas dos trabalhadores e as colocava em sacolas para facilitar o trabalho. Mas logo os mineiros reclamaram que a comida chegava toda misturada. Teve que mudar a sacola e o jeito de carregá-las.
Entretanto as notas continuaram vermelhas.
E o outro irmão também tivera que arrumar um trabalho. Ordens do meu pai. Foi vender pão quando o dia ainda nem tinha amanhecido. Carregava um balaio de taquaras verdes, mais comprido e pesado que ele. Entretanto sua esperteza e sua carinha de santo logo conquistaram freguesia. Quando sobravam pães ele ia até nossa casa e oferecia ao meu pai que morrendo de dó acabava por comprá-los.
Passados alguns meses naquela rotina de pães e marmitas, minha mãe acabou intercedendo pelos filhos alegando que eles eram muito meninos ainda e que eles deveriam ter novas chances. Meu pai, ponderado e amoroso que era, acabou aceitando mas, com uma nova determinação. Caso João não fosse aprovado ele não viajaria para a casa dos tios e da avó, como sempre acontecia nas nossas férias escolares desde que saímos daquela nossa terra natal. E meu pai continuou: "Ainda tem mais, você terá que colocar todas as malas de seus irmãos dentro do Jeep e sem chorar. Estamos entendidos?" Meu irmão abaixou a cabeça, obediente e em sinal de entendidos.
E, no final do ano, João fora reprovado mais uma vez.
Veio a efetivação do castigo. Ainda posso vê-lo cabisbaixo, calado, humildemente carregando cada uma de nossas malas para o interior do Jeep que ele tanto amava.
Foram as piores férias da minha vida. Talvez também a de outros irmãos.
Meu pai lembraria desse dia e contaria essa história por mais de cinquenta anos adiante. E por todo este tempo e em todas as vezes que falava disso rolaram lágrimas de seus olhos azuis.
Fev/2016
Tive dó do seu irmão. Com certeza algum motivo sério com tinha pra essas reprovações e que devido as condições da época nem a família e nem a escola investigaram.
ResponderExcluirGostei demais do seu comentário. Muito obigada.
ExcluirDá pra sentir os olhos azuis chorando e o coração apertado do pai e da mãe. Seus textos são delicados e nós levam por caminhos, muitas vezes conhecidos, mas que recebem uma nova luz quando contados por você.
ResponderExcluirA delicadeza do seu comentário nada ficou inferior ao meu texto. Muito obrigada.
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