domingo, 17 de dezembro de 2017

Fábula: Em meio à polêmica nacional os bichos ficam nus – Final




Se o café havia ficado sem estrelas ontem para a Preguiça, nesta manhã fora a Macaca-de-cheiro que sentiu mal dos intestinos. A pobre Mika levantou como se estivesse passado toda a noite remoendo seus interiores. Entretanto nada deixou-lhe desanimada para nosso último dia juntos naquelas terras tão altas e tão belas. 


O horário havia sido definido para a saída até São Lourenço e o Castor não perdoaria o atraso. A Loba que ficasse esperta e brilhasse os cabelos na volta porque seu marido esperava ansioso pela viagem daquele dia.

Como todas as manhãs do nosso encontro o Macaco, anfitrião, já estava prontamente sentado na confortável poltrona ouvindo seus grandes amigos dos LPs, aclamadíssimos discos de vinil das décadas de sessenta, setenta e oitenta. Altemar Dutra, Paulinho da Viola, seu preferido, Araci de Almeida, Pablo Milanez, Mercedes de Soza e tantos outros. A Preguiça, nessas horas, lembrava da famosa gafieira“Elite” do início dos anos oitenta, em Belo Horizonte, onde dançou boleros e outros ritmos latinos.

Suricato sempre elegante e colorida, mais uma vez, lavou e secou seus cabelos alegando o excesso de oleosidade. E já saia da toca toda retocada.

O Avestruz ficou ainda mais desolado com sua amada sentindo as tais dores naquela manhã de Maria Fumaça. Entretanto ainda conseguia compartilhar os sons da vitrola com seu inseparável amigo Macaco.

A anfitriã controlava tudo com extrema presteza: “Vamos gente senão perderemos o trem!”

E, como mineiros não perdem o trem, lá se foram os bichos acatando as ordens da chefe Mari.

Na porta do hotel já estavam os outros dois casais. O Castor com sua impaciência dava ordens e ria o tempo todo.

A viagem se dera em poucos minutos. Carros bem estacionados e guardados e os bichos ocuparam os passeios públicos se confraternizando com tantos outros turistas. Os machos logo viram bares e cervejas e as fêmeas viram lojas e foram às compras. Roupas, bolsas, relógio.

Há que se dizer que todas elas estavam muito soltas naquele pedaço da floresta, com muita água, árvores e outros bichos humanos, estrangeiros dali.

Chegou a hora de embarcar no tal trem. A estação toda colorida, com os funcionários vestidos de uniformes e acessórios da época áurea dos trens mineiros. De repente ecoou por todo o espaço o som de um conjunto musical que tocava e cantava músicas sertanejas, de raiz. Nesta hora quase que a Preguiça, apesar de toda sua lerdeza, voava pra dentro dos sons e se perdia por lá.

“São três apitos e no terceiro o trem dá a partida. Fiquem atentos. Não coloquem mãos e braços para fora e cuidado com a fuligem que pode queimar os olhos. Se quiserem fechem os vidros das janelas...” e algumas outras instruções foram dadas pela “Trem-moça”. Seria uma jovem estagiaria de turismo?

Logo chegou a violeira com seu chapéu de vaqueira contando e cantando os atritos que todas as noras trazem às suas sogras. Os bichos riram daquelas verdades que nunca são ditas senão nas modas de viola.

Passamos pelo aeroporto quando a cantora revelou ser o único aeroporto do Brasil a ter uma estação de Trem ao largo.

Soledade é uma doce cidadezinha que deveras deixa muitas saudades pois todos vão e voltam na Maria Fumaça que retorna com o mesmo comboio após seu terceiro apito. Ali são fabricados, de forma bem  artesanal, os famosos doces mineiros de frutas e o saboroso doce de leite. E todos nós nos fartamos deles. Jaca foi um dos saboreados e aprovado.


E fora na volta que dois fatos surpreenderam ainda mais aquela viagem: Suricato viu várias Felicidades floridas ao longo dos trilhos, logo lembrou do Dr. Coruja que tanto procurara por tal planta e que ainda não conseguira se juntar aos bichos amigos. O outro fato se deveu ao escarcéu feito por muitos cães no terreiro de uma casa próxima aos trilhos daquela máquina tão barulhenta. Eles se amontoavam num pedaço de escada de cimento só para ver e protestar pela passagem do trem. Talvez dez ou ainda mais num frenesi escandaloso.

Pois bem, cada olhar se dirigia àquilo que mais chamava atenção de seu dono.

De volta a São Lourenço os bichos foram comprar guloseimas pois acataram a sugestão da Preguiça que anunciou ter uma história para contar e pediu um encontro no Castelo Florestal do Macaco naquela última noite do encontro.

Mari, para surpresa de todos, preparou uma mesa apetitosa com tudo que os amigos levaram mais o que tinha-lhe à disposição.

Nesta hora a Preguiça estava deveras pensativa. “Será que devo relatar minha história?” Tarde demais para lamentos. Ela, então, pedira aos amigos que lhe ouvissem contar um segredo dos amores dos tempos de faculdade. E lera um conto escrito por ela onde relatava a importância de um amor platônico durante os seis anos do curso. Em alguns momentos, enquanto as lágrimas brotavam, ela foi se desnudando até ficar completamente nua.


Neste momento, a Loba Loura dos cabelos brilhantes lhe abraçou fortemente tornando-se a bela mulher que um dia fora sequestrada e enfrentara bandidos na sua cidade maravilhosa, Rio de Janeiro. Sobreviveu porque sabia que o marido corajoso estaria lutando com a PM para lhe encontrar e que havia quatro filhos menores lhe esperando para cuidar. A advogada aceitara o desafio e também se desnudava naquele instante.

O Macaco, dono do Castelo, ria de nervoso, e declarava seu amor, mais uma vez, à sua tão amada e primeira namorada. Aquela que há quase quarenta anos carregava todas suas senhas de vida. Inclusive aquele Castelo que ela comprara pela internet. Poderosíssima nossa querida Mari.

Marmotta confidenciou um flerte com um tal Paco logo no início do curso. Entretanto muito mais importante que tal namorico fora sua coragem de ir até o Canadá para encontrar o homem que soube lhe amar e lhe trazer de volta como Motta. O Mar ficou apenas por conta do seu olhar. E sua nudez encantou o condutor do trem-bala além de todos nós também.

Suricato-fêmea falou do namoro com o anjo, já no primeiro período da faculdade. Seu casamento com outro que não era anjo havia acabado de forma muito sofrida. Anunciou seu desejo de tantas outras viagens e sua alegria em estar ali. Antes havia me segredado o quanto lhe tem sido difícil tirar as roupagens diante da vida mas que estava disposta continuar a fazê-lo. Suricato é uma mulher de muita sobriedade. Artista das mãos. Poeta, escritora e agora, quase nua.

O Avestruz assistia tudo aquilo com seu jeito de menino caipira mineiro, dando risadinhas curtas, abaixando a cabeça e cruzando as mãos juntas entre as longas pernas. Não falou de si. Suas penas coloridas eram a cobertura perfeita para um corpo tão devastado pela dor. Os amigos sabiam disto, eram solidários ao seu silêncio e acreditavam ser apenas uma questão de tempo para que houvesse a muda de penas como acontece com todas as aves. Seu pescoço comprido era o exato espaço para tudo que tinha de engolir e suas idas aos diversos sanitários era seu jeito de eliminar as agruras que a mesma vida lhe trazia. Sua amada ao lado e já bem melhor nesta noite, certamente, tem sido o presente que a tal vida vem lhe conceder no depois. Com certeza quando lhe caírem as penas nos apresentará o amigo que desde sempre conhecemos e amamos.

O Canis lupus, competentíssimo e o mais brilhante da nossa época de estudantes de medicina, nos segredou com os braços, as pernas, a cabeça, as mãos e as palavras, que estudara tanto para não ser especialista em nada. Fez consistentes avaliações do seu percurso na medicina, na família e enquanto marido. Nesta hora todos nós o ouvimos com muita atenção. Estávamos deveras emocionados. Despir-se ali foi para nós uma grande surpresa.

Há que se contar que não fora fácil tirar nossas roupas em torno de uma mesa e num tempo em que a censura vem, mais uma vez, desencantar a arte dos homens. Entretanto, desnudar-se, fora inevitável para que se desse de fato um encontro de amigos.

E, para encerrar esta longa fábula que se desnudou em crônica, trago aqui o trecho de um livro que ora tenho lido:

“Os turistas vão à procura de lugares para fugirem de si próprios, da rotina, do stress, da infelicidade, do tédio, da velhice, da morte... Os viajantes vão à procura de si em outros lugares.” (*)

                                        Fim

(*) A Cidade de Ulisses - (Teolinda Gersão. Editora Oficina- República Portuguesa)


Observação: Nosso próximo encontro acontecerá no início de 2018 na cidade de Muriaé (MG) com possível subida ao Pico da Bandeira, no Parque Nacional da Serra do Ca
paraó. E todos os amigos estão convocados.

12/12/2017










Um comentário:

  1. Que fábula maravilhosa...um escritor nato...Parabens...Deu vontade de embarcar neste trem...

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