segunda-feira, 1 de abril de 2019

Quando comecei a escrever

Já morava em outra cidade. Durante algumas semanas das férias voltava para minha terra natal. Ali eu pensava que tivesse um lugar. Caminhava desenfreada pelas raras ruas entre os morros. Havia duas praças. A principal ficava na região do meio, entre a outra no alto e a ponte de madeira sobre o Rio, mais embaixo. 

Junto das minhas exuberâncias adolescentes havia na cidade uma promessa dos jovens rapazes que saíam para estudar técnicas agrícolas em Barbacena ou engenharia florestal na Universidade Federal de Viçosa. E muitos deles  conseguiam ser aprovados naqueles vestibulares tão concorridos. Outros, talvez aqueles sem recursos, acabavam indo para São Paulo em busca de empregos. Eu ficava admirando uns e apaixonando por outros. Obviamente guardava em segredo todas aquelas paixões. 

Com treze ou catorze já havia decidido que faria engenharia florestal em em Viçosa.

Para acolher tantos amores e sentimentos novos precisava de um diário. Então comecei a escrever.

Nesta época aconteceram dois fatos que marcaram a minha vida para sempre: eu me aproximei de uma menina da minha idade que tinha as pernas paralisadas. Ela vivia em cima da cama. E me apaixonei por um novo morador da cidade.

A menina era muito linda mas o moço era muito feio. Nunca soube o que havia visto nele. Talvez a novidade ou algum charme captado por meu coração. Acho que as coisas aconteceram juntas e tinha um por que. Minha nova amiga havia se apaixonado pelo irmão mais velho do outro. Este sim era tão bonito quanto sua apaixonada. Estava tudo explicado. Duas meninas amando dois irmãos.  Estes irmãos nos deram muito o que falar além de me deixar sonhando várias semanas e de consumir quase todo meu primeiro caderno de diário.

Porém, nisto tudo havia um detalhe deveras importante: a ascendência dos dois irmãos. Eram filhos do mais novo fazendeiro promissor da cidadezinha que logo seria eleito prefeito. 

Deu-se entretanto uma uma tragédia a seguir. O mais velho, ajudando o pai prefeito na conservação das estradas de terra, foi vítima de um acidente quando a patrola mononiveladora que dirigia virou num barranco sobre ele. A morte o levou com seus dezoito anos. Eu nunca havia visto a morte tão de perto. Para suportar a presença dela bem ali ao meu lado eu escrevia. Foi o jeito conseguido para dar nome àquele sentimento avassalador, até então desconhecido.  

Certamente, graças às minhas escritas confidenciais, sobrevivi ao primeiros amores e à primeira morte.

Quase meio século se passou desde então. Mas, ainda hoje, o nome do amor da minha amiga continua entranhado nas minhas memórias e, como canta seu homônimo, "você diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir".

01/04/2019




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