sexta-feira, 10 de maio de 2019

Conto: A camisola de dormir





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A menina bem que gostava de todo aquele luxo. A casa era a mais chique da rua. Os móveis clássicos davam a impressão de que ali não se deveria sentar. Os vários quartos com suas camas eram propriedades privadas. Nem pensar em olhar para aqueles recintos. Ali moravam sua tia com o marido, os filhos e sua mãe.

A menina brincava o tempo todo esperando a hora do café da tarde. Ou quem sabe não ficaria até o jantar para se deliciar com toda aquela comida gostosa. 

A avó ensinava os pontos básicos do crochê. Primeiro as correntinhas. Depois os buracos como se fossem redes. A seguir pontos abertos e pontos fechados que ela achava muito bonito. O ponto aranha viria por fim. Ela nunca gostou deste ponto mas sabia do seu lugar de destaque nas peças crochetadas por ele.  A irmã aprendia com muito mais facilidade mas não tinha a tal disciplina exigida pela avó que logo arrumava uma desculpa para mandá-la de volta para a casa da mãe.

A menina se fazia de boazinha para ganhar privilégios. Atendia a todos os pedidos e ordens da avó e da tia. Percebia que havia algo de estranho no ar no que se referia a ela mas resistia a tudo pelo prazer dos quitutes. Entretanto na hora dos tais cafés da tarde, enquanto devorava os bolos e os pães caseiros, lembrava dos irmãos em casa. Certamente estariam comendo angu frito que, de propósito, havia sido feito em demasia na hora do almoço. Lembrava da irmã que fora embora a mando da avó ou da tia.

Terezinha era o nome da menina que si fazia de boazinha. Logo ela aprendeu, de forma muito perigosa, a ter mais dias naquela casa. E já aprendera muitos pontos no crochê que a avó não parava de ensinar. A irmã, que aprendera com muito mais desenvoltura, já confeccionava todo tipo de trabalho, até o famoso ponto segredo que Terezinha sempre achava o mais bonito.

Um dia a avó mandou que Gracinha, a irmã, começasse a crochetar uma camisola na linha mais fina, cara e das cores mais bonitas que existia: uma mercê-crochê na cor rosa claro. Gracinha não se intimidou. Começou logo seu trabalho com capricho e encanto. Certamente a avó iria lhe presentear por seu trabalho. A cada dia a tal camisola ia crescendo e ficando mais perfeita.

E a camisola ficara pronta na semana do aniversário de Gracinha que, toda contente, tinha certeza que seria  presenteada com seu trabalho. Pensava que a avó iria lhe fazer uma surpresa. 

Terezinha ficava só admirando o talento da irmã que estava virando uma mocinha muito linda. Ia fazer doze anos. E ela ficaria muito feliz dentro daquela camisola cheia de pontos difíceis.

Chegou o aniversário da irmã. Logo cedo ela foi para a casa da avó. Estava ansiosa para ganhar o presente. Na hora do almoço a tia disse para que ela voltasse para casa porque a mãe poderia estar esperando e ficaria preocupada. Nada de presentes. Talvez a avó tivesse esquecido. 

No outro dia Gracinha fora lá bem cedo e a avó pediu que buscasse uma folha de presente bem bonita. Lá fora a irmã cumprir o pedido. Ou a ordem? A avó então diz para a neta que aquela camisola era um presente para Aninha, a neta filha de um outro filho seu. Aninha era vestida como se fosse uma boneca. E era educada para ser princesa.

A irmã voltou para casa. Era só tristeza e raiva. 

A mãe das duas irmãs vivia muito doente. Então elas suspeitavam que a avó e a tia rica falavam que o filho não deveria ter se casado com ela. Gracinha juntou isto com aquilo e foi à forra. Nunca mais voltou para cumprir pedidos ou ordens.

Mas Terezinha continuava indo pois sua gula falava mais alto que seu orgulho. Não quis mais aprender crochê. Passou a ficar só brincando com a prima e sua bonecas. Uma delas era do tamanho da prima e até falava "mamãe".

E os tempos passaram. Eles são implacáveis. 

Gracinha cresceu "topetuda" como dizia a mãe dela. Casou. Teve quatro filhos. Virou a avó mais doce da família. Hoje ela faz inúmeras peças em crochê e muitas roupas para as netas. Sem quaisquer discriminações.

Terezinha não gosta de crochê. Amarga ainda hoje a desfeita que a avó fizera com sua irmã. E amarga ainda mais a sua gula, a sua falta de solidariedade com a irmã naqueles tempos. Só de uma coisa ela se orgulha: do imenso amor que sente por Gracinha e da saudade da mãe adoentada.

Observação: por favor, assinem os comentários para eu saber quem são vocês. Certo?





(*) Foto feita pela autora no hall de um hotel em Amsterdã - julho de 2018

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