Não me lembro da ordem em que os dois fatos aconteceram, porém lembro-me bem do tanto que os mesmos me tocaram.
Um deles foi-me relatado pelos colegas do plantão noturno do dia anterior ao meu plantão diurno semanal. Sempre gostava de chegar alguns minutos mais cedo para conversar com os colegas da enfermagem sobre os trabalhos da noite; era a famosa e necessária "passagem de pantão".Contaram do jeito e do sentir deles, acerca de um jogador do Atlético, famoso naquele tempo, que havia ido visitar a mãe, internada naquela unidade hospitalar pública especializada em acolhimento, para observação e tratamento, às pessoas portadoras de sofrimentos mentais em crises agudas graves. Relataram eles que o tal atleta não poderia ir visitar a mãe durante o dia porque estava concentrado para um jogo do seu time. Nessa época eu trabalhava enquanto psiquiatra atendendo tanto aos quadros de urgências dos pacientes internados quanto os acolhimento de novos pacientes encaminhados pela rede pública de Saúde Mental de Minas Gerias. Era o que eu mais gostava de fazer naquele hospital.
A partir do relato do caso fiquei pensando naquele homem enorme e famoso ali, naquele hospital, pedindo permissão para ver sua mãe fora do horário de visitas. Segundo me contaram ele teria sido muito gentil no pedido. Embora tivesse sido reconhecido pelos trabalhadores torcedores do "gigante alvinegro", não fora esse o motivo da permissão. A direção do hospital naqueles bons tempos* deixava bastante esclarecido que cada paciente internado tinha suas peculiaridades e, portanto, cada um deles deveria ser atendido na sua singularidade. Portanto, nenhum trabalhador da enfermagem ou médico plantonista, deixaria de acatar o pedido de um filho para visitar sua mãe dados os esclarecimentos conforme foram dados.
Pois bem, aquele homem enorme, negro, simples e famoso pelo Brasil afora estava ali tentando ver sua mãe internada. Segundo disseram alguns colegas ele havia se mostrado bastante emocionado e carinhoso ao lado dela .
Li, recentemente, numa revista progressista, um excelente artigo desse ex-jogador, aposentado há algum tempo pelo futebol. Logo me lembrei do episódio ocorrido no hospital. Então, conforme me relataram, entendi todo sentimento que ele havia posto em ato no encontro com sua mãe.
O outro recorte aconteceu comigo durante outro plantão.
Fui chamada para mais um atendimento externo. Como sempre fazia, convidei o paciente para uma primeira entrevista, já tendo lido seus dados de identificação e as anotações da enfermagem no prontuário eletrônico aberto no monitor. Era seu primeiro atendimento naquele hospital. Logo no início da anamnese pude observar sua aparência bastante descuidada, apresentar-se muito envelhecido para sua idade, emagrecido e debilitado. Ele não conseguiu responder às perguntas feitas, não se lembrava de fatos importantes recentes ou antigos de sua vida. E quase não entendia o que eu perguntava.
Diante disse logo convidei o acompanhante para dar informações a respeito do paciente e assim me ajudaria na elaboração de uma hipótese diagnóstica. Ele entrou bastante solícito e ouviu minhas perguntas. Ali, ao lado, o paciente mantinha-se alheio a tudo.
Após anamnese, com exame psicopatológico e pouca conversa, informei ao acompanhante sobre minhas suspeitas acerca do quadro clínico-psiquiátrico e sobre a conduta requerida para o caso. Então, o acompanhante chorou copiosamente. Tratava-se de um homem preto, alto, do rosto arredondado, postura física elegante, vestido com simplicidade. Disse-me que lamentava muito sobre o acontecido com seu irmão, pois esteve distante por logos anos e não conviveu com seus irmãos. Abaixou a cabeça e continuou seu choro visivelmente melancóico.
Não sei em que momento reconheci aquele homem acompanhante. Só sei que se tratava de um grande artista mineiro. Eu o havia conhecido quando de sua apresentação na abertura de um Congresso Brasileiro de Psiquiatria em Belo Horizonte. Havia gostado tanto que passei a indicar seus shows para todos ao meu redor. Fiquei deveras encantada por seus trabalhos e sua história de vida.
Agora estava ali, diante de mim, e chorava tal qual uma criança. Não lembro o que lhe disse após reconhecê-lo. Eu e minha boca destrambelhada, certamente, disseram-lhe o que não deveria naquele momento de tanta dor para ele.
Constatei que, diante de mim, estava tão só o menino preto, pobre, morador de periferia que, “para sobreviver”, teve que deixar os irmãos para trás.
O outro recorte aconteceu comigo durante outro plantão.
Fui chamada para mais um atendimento externo. Como sempre fazia, convidei o paciente para uma primeira entrevista, já tendo lido seus dados de identificação e as anotações da enfermagem no prontuário eletrônico aberto no monitor. Era seu primeiro atendimento naquele hospital. Logo no início da anamnese pude observar sua aparência bastante descuidada, apresentar-se muito envelhecido para sua idade, emagrecido e debilitado. Ele não conseguiu responder às perguntas feitas, não se lembrava de fatos importantes recentes ou antigos de sua vida. E quase não entendia o que eu perguntava.
Diante disse logo convidei o acompanhante para dar informações a respeito do paciente e assim me ajudaria na elaboração de uma hipótese diagnóstica. Ele entrou bastante solícito e ouviu minhas perguntas. Ali, ao lado, o paciente mantinha-se alheio a tudo.
Após anamnese, com exame psicopatológico e pouca conversa, informei ao acompanhante sobre minhas suspeitas acerca do quadro clínico-psiquiátrico e sobre a conduta requerida para o caso. Então, o acompanhante chorou copiosamente. Tratava-se de um homem preto, alto, do rosto arredondado, postura física elegante, vestido com simplicidade. Disse-me que lamentava muito sobre o acontecido com seu irmão, pois esteve distante por logos anos e não conviveu com seus irmãos. Abaixou a cabeça e continuou seu choro visivelmente melancóico.
Não sei em que momento reconheci aquele homem acompanhante. Só sei que se tratava de um grande artista mineiro. Eu o havia conhecido quando de sua apresentação na abertura de um Congresso Brasileiro de Psiquiatria em Belo Horizonte. Havia gostado tanto que passei a indicar seus shows para todos ao meu redor. Fiquei deveras encantada por seus trabalhos e sua história de vida.
Agora estava ali, diante de mim, e chorava tal qual uma criança. Não lembro o que lhe disse após reconhecê-lo. Eu e minha boca destrambelhada, certamente, disseram-lhe o que não deveria naquele momento de tanta dor para ele.
Constatei que, diante de mim, estava tão só o menino preto, pobre, morador de periferia que, “para sobreviver”, teve que deixar os irmãos para trás.
Meu irmão e filhos numa visita à Arena MRV em novembro de 2022
(*) Nos relatos destes recortes não me propus discutir sobre a posição de uma unidade hospitalar psiquiátrica no âmbito da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Aqui minha intenção foi tão só relatar sobre dois momentos que me tocaram profundamente assim como tantos outros vividos durante meus quase quarenta anos como trabalhadora na rede de Saúde Mental Pública em Minas Gerais .
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