sábado, 24 de maio de 2014

Uma história do meu pai




Meu pai nasceu em 1919. Sempre se orgulhou em dizer do nome escolhido por sua mãe. Uma homenagem ao grande lorde inglês que lutou bravamente contra Napoleão Bonaparte na famosa batalha naval de Trafalgar. O que meu pai não deve saber, penso eu, é que, apesar da vitória da marinha inglesa, o destemido almirante fora ferido mortalmente naquela batalha. Mas isto não importa para meu pai nem para as grandes histórias da sua vida.

Com seus noventa e quatro anos é um homem lúcido, alegre e cheio das lembranças de sua infância, da sua adolescência e da sua vida adulta, já enquanto pai de família, músico, político, motorista e funcionário público.

Meu pai nunca escondeu o amor pelo teatro, por Dalva de Oliveira, por Ataúlfo Alves, por Ari Barroso, por Vicente Celestino e tantos outros artistas de sua geração. Nascido quarto filho de uma prole de oito homens e uma mulher, o menino crescera fazendo pequenos mandados para sua mãe. Seu pai, caixeiro viajante pelas cidades distantes, aparecia de vez em quando para fazer mais um filho e levar o dinheiro que a esposa arrecadava na venda da geleia de mocotó que ela fazia, dos ovos e dos frangos que criava.
    
Meu pai era o escolhido para fazer as entregas, receber os pagamentos e dar o troco. Aprendeu rápido a fazer contas e nunca errava. Entretanto, se, por um lado tinha as responsabilidades de menino grande, por outro lado era o mais endiabrado e vivia se metendo em confusões. Naquela época os castigos e as sovas eram proporcionais às diabruras. E não foram poucas as varas de marmelo que minha avó quebrara nele.

No desespero da educação daquele filho, a mãe acabara pedindo bênçãos especiais ao Padre, tão amigo que era dela. Ele dera conselhos e uma ideia brilhante. O filho, já na idade para o catecismo, seria um de seus coroinhas. Lá se foi o menino Nelson ajudar o padre nas missas em latim, nas limpezas da igreja, nas comunhões aos doentes, nas extremas-unções aos desenganados, nas visitas às zonas rurais, na confecção de velas, nos velórios e por ai afora.

Minha avó ficou feliz com a desenvoltura do menino e o caminho da retidão. Mas isto era o que ela pensava. Seu filho continuava com a via sacra de artimanhas, agora bem mais esperto, conseguindo livrar-se dos castigos apontando um irmão ou primo como responsáveis por seus atos. E sempre saia bem nesta tarefa. Já era um santo de tanto conviver com a comunidade religiosa. 

E, naquele dia, deu-se um velório e a meninada queria saber quem havia morrido. Queriam ver o defunto. O filho santo-do-pau-oco da minha avó nada contou do que havia visto antes de encostar a enorme e pesada porta da igreja. Só devia deixar uma fresta para evitar a entrada de gatos, cachorros e outros animais indesejáveis àquele recinto santo. Afinal havia um caixão, mesmo que muito pobre, e uma falecida sem familiares. 

Meu pai sabia que a defunta era a Banguela. Uma mulher que vivia nas ruas, não porque seus familiares a tivessem abandonado. Fora ela que, após perder um grande amor nos seus dezessete anos, perdera também o juízo e ficava errante pelas casas.
      
Ele não tinha medo dela como os outros meninos que, era só ela aparecer nas ruas, para eles desaparecerem. Aquele pequeno almirante dava-lhe quitandas e gostava de sua loucura. Mas a mulher fora ficando entrevada e já andava arrastando as pernas. Os joelhos ficaram arqueados. Os dentes foram apodrecendo e caindo. O protético da cidade bem que lhe prometeu uma dentadura. Ela dizia que aquilo era risada do diabo e não aceitou. Era uma figura muito feia de se ver. 

Banguela morreu e meu pai soube que tiveram que esticar as pernas e amarrar os joelhos para tampar o caixão. Um coroinha vê de tudo. No final da tarde daquele dia como sempre acontecia, a meninada se acocorou na praça da igreja. Queriam ver quem havia morrido. Esperaram a noite chegar. Fizeram apostas para testar a coragem uns dos outros e lá se foram alguns ver o falecido. Vencida a primeira dificuldade para empurrar aquela porta tão pesada e barulhenta, seguiram rumo às velas. 

Então precisaram abrir o caixão. Com as pequenas mãos trêmulas alguns conseguiram desfrouxar os parafusos. Ai aconteceu o imprevisto do pavoroso. 

Os joelhos mal amarrados da Banguela dobraram e, num só golpe, jogaram a tampa do caixão para um lado e ela caiu para o outro. Só se viu menino chorando, gritando e correndo. 

Segundo meu pai, que assistiu de camarote, ainda tem menino correndo até hoje.


Observações:
1 - Peço, àqueles que fizerem comentários, que  escrevam seus nomes e de onde residem. Obrigada.

2 -Versão em inglês: 
http://www.contosderivelli.com/2015/09/my-fathers-name.html

6 comentários:

  1. Entrei na cena . Morri de tanto rir.

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  2. Nossa! Histórias de defuntos assim a gente nunca esquece mesmo. Você me deu a ótima ideia de contar uma minha... Saudades.

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  3. É . Dá pra fazer até uma representação teatral este fato histórico . E que memória boa vc tem amiga . Parabéns pra vc mais uma vez . Deu até pra rir um pouco .

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