segunda-feira, 28 de julho de 2014

MINHA TIA



                 MINHA TIA


  Eram dez irmãos, cinco mulheres e cinco homens. Todos cresceram nos cuidados da fazenda que fora construída no final do século XIX. Apesar da altura e do tamanho, a casa fora construída de adobe, madeiras e bambus trançados. Toda a fazenda trazia consigo a sombra do tempo da escravidão. 

 O avô veio da Itália ainda menino, por volta de 1870. Teria sido deixado, pelo pai, no Porto do Rio de Janeiro sob a tutela de um amigo. Portanto não havia outros parentes no Brasil. 

  Eu só sei que toda ascendência da minha família chegava apenas até esse homem-menino. Ele crescera na zona rural da cidade de Rio Pomba, Zona da Mata Mineira. Fizera um bom casamento com a filha de um fazendeiro. Tivera cinco filhos e tantos outros por fora. E, um desses filhos do casamento abençoado por Deus, era o pai daqueles dez filhos por onde comecei minha história. 

  Então, o filho mais velho dos dez, fora ainda menino para o seminário em Mariana, haveria de ser ordenado padre. Estudara latim, filosofia, francês, espanhol e sabia tudo dos santos e santas. Conhecia as parábolas da bíblia, todas as epístolas e por ai afora. Coisas de padre.

  Depois vinha minha mãe que o avô italiano fizera questão que aprendesse a ler para ensinar os filhos dos lavradores e meeiros. Todos os filhos se casaram. Apenas uma não se casou.

  E é dessa Tia que hora tenho a contar. Nascera em 1929.

  Quando a irmã morreu no parto da terceira filha, ela se apegou nos cuidados das duas meninas maiores. Uma delas ainda não tinha dois anos e a outra estava com quatro anos. O pai levou os dois meninos para a cidade grande onde eles poderiam ir à escola e ele poderia trabalhar. A menina nascida ficara com uma irmã do pai que era casada e que não tivera filhos.

  Conta-se que a tristeza tomou conta de todos naquele tempo. Minha mãe dizia que era sua irmã mais bonita. Mas para mim, bonita mesmo, era essa minha Tia. E eu não cansava de admirá-la. Tinha pra mim que queria ser igual a ela.

  Ficava observando os modos de criação dela com as sobrinhas-filhas. Ela não permitiu ser chamada de mãe. Era apenas Tia Vivi. 

  As meninas andavam como princesas. Os cabelos cheirosos, bem cortados e penteados. Tinham até laços de fitas coloridas.

  Minha Tia era cheia de atributos artísticos. Costurava, bordava, cozinhava, fazia deliciosas quitandas e ainda cuidava da mãe e dirigia aquela imensa casa paroquial. Era ela quem cortava e costurava todos os vestidos das meninas e, às vezes, também os nossos. Eram os vestidos mais bonitos da cidade. Com tecidos finos e caprichosos bordados.

  As meninas eram obedientes; criadas nos conformes da igreja, coroavam Nossa Senhora do Rosário e participavam de todas as festas religiosas.

  Minha Tia sabia de tudo. Era a mulher mais inteligente que eu conhecia. Quando minha mãe ficava doente, eu e minha irmã éramos entregues aos seus cuidados. E minha mãe adoecia sempre. Então minha Tia cortava meus cabelos, costurava minhas roupas e me dava banho. Eu adorava ficar com ela.

  Minha irmã, que tinha um ano a mais que eu, me protegia dos ataques de ciúmes da nossa prima mais nova. Ela devia sentir sua primazia ameaçada. E lá iam tapas, puxões de cabelos, roupas rasgadas e muitos castigos. Eu ficava condoída vendo minha irmã nos castigos. Ela era danada e não aceitava os insultos e provocações da prima.

  Uma dessas primas tinha o nome igual ao meu, uma homenagem a Nossa Senhora do Rosário, padroeira e mãe de todos daquela pequena cidade. Ela era uma linda menina. Acho que sentia inveja de tudo dela. Muito mais por minha Tia.

  Enquanto minha avó era adocicada o tempo todo, minha Tia sabia ser muito brava ou muito carinhosa nos tempos devidos.

  Minha Tia era de poucas palavras e muitas atitudes. Entretanto, de tempos em tempos, ela ficava só dentro de casa, não gostava das visitas nem das conversas. Ensimesmava. Ficava assim até por alguns meses. Eu não entendia nada daquilo. Achava que minha Tia ficava brotando, pois, depois desse tempo quieta, ela desabrochava e ficava ainda mais exuberante. Era toda alegria.

  Se, por um lado ela falava pouco, por outro lado ela vivia falando com as mãos. Às vezes parecia que seus lábios se moviam como se estivesse falando com alguém invisível e não fosse preciso som na sua voz. Eu achava aquilo muito esquisito. Diziam que italianos falavam com as mãos...E, aquilo vindo dela, me parecia uma misteriosa beleza.

  Anos mais tarde quando meu pai proibiu que eu amorasse o vizinho, ela, durante suas visitas à minha casa em outra cidade, me chamava para levá-la à igreja e, no meio do caminho, lá estava ele a me esperar. Ela dava um jeito em tudo.

  Tia Vivi não se casara nem tivera noivos. Não estudara mais do que o aprender a ler. Ela não realizara grandes viagens. Ela não acumulara riquezas. Entretanto, para mim, Tia Vivi, continuará sendo, eternamente, a mulher mais sábia com a qual a vida me presenteou. Minha Madrinha.


  Minha Tia ainda vive na casa do irmão Padre que falecera na primavera do ano passado. Uma de suas sobrinhas-filhas vive com ela. A outra se tornou costureira e bordadeira de luxuosos vestidos de noiva em Juiz de Fora.

  Eu tenho tentado, durante toda a minha vida, mirar-se em seu espelho.

  E, lembrando Fernando Pessoa, acho que minha Tia nunca teve problemas, só mistérios.




15/07/2014

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