A REINVENÇÃO
Contrariando as recomendações do ortopedista, decido caminhar
em companhia de minhas filhas. Uma delas, atleta, optou pela corrida. A outra começou ao meu lado, mas logo me
deixou para trás uma vez que meus joelhos começaram a doer e foi necessário reduzir a marcha.
Então fiquei comigo naquela charmosa avenida, minha velha parceira de mais de
vinte anos de caminhadas.
E caminhando deparei-me olhando para o chão, uma mania. Parecia que eu procurava
alguma coisa perdida. Foi ai que me lembrei do par de brincos de pérolas de
Maiorca, que eu usei no meu casamento e que havia perdido, um deles, no hospital onde trabalho.
Durante
os plantões seguintes procurei, em vão, por aquela joia perdida. Até desistir.
E, finalmente, nesta manhã ensolarada de inverno, encontrei meu
brinco perdido.
Ele estivera comigo durante toda esta semana e, só agora eu
consegui vê-lo.
E fora no meu último plantão noturno, antes das minhas
longas férias e posterior aposentadoria, que a referida joia apareceu.
Era um jovem de vinte e dois anos, levado até ali pela policia
militar, acompanhado da mãe que se mostrava muito serena ao lado dele.
Entrou no
consultório sem dificuldades, mas com ares de poucos amigos. Tinha nome de cantor nordestino famoso dos
anos oitenta. Estava ele deveras emudecido como aquele cantor que lhe deu o nome.
Não quis conversar comigo, mantendo-se cabisbaixo. Mais uma
tentativa de abordagem e ele continuava calado. A seguir chorou com muita angustia e disse
que odiava a mãe. Voltou o rosto para ela e acusou-a de não gostar dele. Chorou ainda mais e passou a agredi-la verbalmente com muita hostilidade.
Intervi naquele momento, com tranquilidade e firmeza, pedindo-lhe que parasse com tais agressões e que falasse o que
estava acontecendo.
Ele, ainda de cabeça baixa, me disse que ela protegia os
irmãos mais velhos e que um irmão havia lhe quebrado um de seus dentes da
frente.
-“deixe-me ver seus dentes. Talvez, seja necessário encaminhar
você ao dentista”. Disse-lhe.
Ele levantou o rosto, abriu a boca e me mostrou a gengiva
com o dente faltante. Entretanto, muito mais que o vazio daquele dente, pude
ver o vazio que se instalara naquele jovem. Ele continuava chorando, e sua tristeza contagiava
em volta.
Tranquilizei-o dizendo que providenciaria alguns
medicamentos para aliviar a dor de dente e que iria solicitar a avaliação por um cirurgião
dentista. Nesta hora a mãe informou que ele mesmo já vinha pagando seu
tratamento odontológico.
A seguir ele me olhou, aprumou na cadeira e disse:
-"eu sou o Messi, o melhor jogador do mundo”
Então, enquanto o melhor jogador do mundo, fora possível para ele falar desse sujeito encontrado para suportar a angústia do que lhe faltava.
E eu continuei meu trabalho,
já não mais com um cantor decadente e esquecido dos anos oitenta, mas com o mais
genial jogador de futebol de todos os tempos.
Tai meu brinco perdido, não mais uma falsa pérola espanhola, mas uma verdadeira pérola argentina.
E é assim, REINVENTANDO A VIDA, que encerro meus SINAIS E SINTOMAS DE DESPEDIDA.
Genial, minha amiga.
ResponderExcluirParabéns!
Sonhamos um dia em que a saúde mental, ou seja, a saúde da alma, tenha seu devido status como busca humana. A literatura, a palavra, cria realidades, querida companheira de cura.
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