segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Já tenho um novo amor



                  
Acordei cedo. Um devido compromisso me chamava. O frio deu-me uma noite mal dormida por preguiça de pegar mais cobertores.

As brumas, ainda adormecidas, insistiam em continuar seu sono gelado. Agora caminhavam vagarosas e molengas pelo canal do Rio Paraopeba. Viajo nos flocos delas e, lá de cima, me farto de tanto ver o trem de ferro deslizando e apitando com seu chique-chique mineiro. É o que faço em minhas viagens imaginárias.

Um primo, geólogo e músico, me dissera que nesta região há uma formação geológica que permite tal beleza. O encontro de duas serras. Não me lembrava da nossa conversa que se dera há alguns anos, mas arrisco a dizer que são as Serras do Espinhaço, ou o finalzinho dela com a Serra do Curral, e a Serra da Mantiqueira. Eu não entendo nada dessas coisas, mas adoraria saber disto. Acho que tentarei encontrar meu primo novamente. Quem sabe ouvir boa música e ouvir das serras e rios.

Galinhas tratadas. Agora tenho frangas e projetos de galos no meu pequenino sítio. Ontem a tarde uma juriti visitou o ipê ainda jovem ao lado do meu chalé.
  
Cachorros alimentados. Uma velha cadela branca, que vivia nas ruas da região cavando a terra como tatu e dormindo em tais buracos, acabou ficando dentro da minha área quando coloquei a cerca. Logo chegou um jovem cachorro preto. Minhas vizinhas disseram que ele era muito valente e vivia sendo espancado pelos moradores devido sua ousadia. Ele me adotou e eu adotei sua ousadia.

  Aguardei inquieta a chegada dos canários da terra, dos garrinchas, dos sanhaços, dos tico-tico e outros ainda não reconhecidos. São muitos a me visitarem nesta manhã. Coloquei alimentos e outros atrativos para que eles viessem. Deu certo.

  Uma xícara com café grosso, bolo, pão e manteiga, às escondidas da minha filha, pois estamos mudando hábitos alimentares e cortando carboidratos. Tarefa mais árdua de todas. Sou mineira e não viveria sem os queijos, broas, biscoitos, doces de leite e por ai afora.

  Então vem o pensamento que também habitou minha cabeça na noite fria. Um amor que não vingou. Ficou lá trás. Entretanto deixou referencias do existir.

  Dele recebi como presente, ainda menina, o empréstimo do livro Germinal, do francês Émile Zola. Tomei o lado dos carvoeiros e chorei suas vidas e suas mortes. Fora o início de uma grande amizade e identificação com as leituras dos oprimidos e excluídos pelo capital e seu abismo social. 

  Antes, aos onze anos, eu havia pedido como presente de natal “Os Miseráveis” e meu pai comprou uma bela edição infanto-juvenil com ilustrações e um pouco da história de Victor Hugo. Muito tempo depois eu iria ler “A Mãe” do russo Máximo Gorki. Nunca mais parei de ler.

 Mas, voltando ao meu amigo, ou namorado, vem a lembrança de nossas conversas acerca do momento político em que vivíamos, a ditadura brasileira e sua violência. Tínhamos assuntos os mais variados. Só não falávamos de nós.

 Chegou o tempo de cada um seguir seus rumos e suas escolhas. Nossas conversas foram tornando-se pouco frequentes.

  Porém, durante alguns anos, nos encontramos nas noites de Natal, em nossa cidade. Não lembro como se arranjavam, mas lembro de sua mansidão e de seu riso farto, assim como fartos eram seus cabelos e sua barba.

  Até que não houve mais encontros. Um não soube mais do outro.

  Continuei minha vida naquilo que me fora possível viver dadas minhas posições frente à vida. 

  Várias noites tentei escutar, em vão, o eco das risadas daquele que tanto amei. 

  Sempre soube que seríamos como os referenciais da física. Um teria o outro, eternamente, vivendo como vetores paralelos, mas em sentidos opostos. Um na carne e outro no espírito. E não haveria verbo.

  Hoje, passados quase quarenta anos, vem a pergunta que jamais calou. O que houve?

 Sabemos todas as respostas. Entretanto nenhuma delas bastará para apagar a saudade e os desencontros.

  Agora, enquanto arrumo meu quarto nesta fria manhã de agosto, uma grande ave sobrevoa em torno da minha casa, bem próxima a minha janela. 

  Ela pousa num dos galhos do mais majestoso ipê. Então fica ali a me espreitar, atentamente. 

  Paro com as dobras de colchas e cobertores e encaro o olhar atrevido daquele pássaro gigante.

 Reconheço tal ave. 

 Então decido que tá na hora de um novo amor: um jacu.


 Funil, 03/08/2014



Um comentário:

  1. Tão lindo!Tou amando suas histórias;de alguma forma me fortalecem.Ver vocês,suas filhotas,seguindo em frente,faz-me um bem imenso.E`um referencial.

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