terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

BOLSA DE TABACO



                              BOLSA DE  TABACO


Era dia de prova prática de "Introdução às Técnicas Cirúrgicas". Deveríamos demonstrar habilidades para suturar as peças anatômicas conforme nos haviam ensinado os mestres cirurgiões.

  
A mim coube a tarefa de suturar uma lesão de pele arredondada, com mais ou menos dois centímetros de diâmetro, com bordas regulares mas com perda de tecido.

Nessa época estava com problemas de saúde na minha família e pouco pude frequentar tais aulas práticas. Entretanto minha sempre amiga de mesa anatômica e de peças cirúrgicas tinha me socorrido e me ensinado algumas suturas. Eu adorei os pontos e fiquei lembrando daqueles ensinados por minha mãe para fazer bainhas em fronhas e lençois, sobretudo o ponto Paris, para mim o mais clássico e bonito.

Minha nota fora uma das maiores da turma e o professor perguntou onde eu havia aprendido a suturar uma "bolsa de Tabaco" com tanta perfeição. Não respondi. Ou ainda não havia feito a associação com os pontos ensinados por minha mãe naqueles tempos de provas.

Hoje, tais enlaçamentos que a vida nos vai provocando, faz todo o sentido. Então me lembro de uma doença esquisita que me apareceu na mão esquerda. Nós ainda morávamos na distante Brás Pires, uma cidadezinha na zona da Mata Mineira, com seus parcos recursos em saúde. 

Minha mãe tinha fé nas folhas de pé de fumo escaldadas em água quente. Eu tinha nervoso daquelas folhas escuras e raspantes. Elas deixavam a água esverdeada e pesada. E minha mãozinha escaldava dentro daquilo. Não resolveu. 

Parecia que tinha um relógio dentro daquele caroço que crescia e doía. À noite latejava e pulsava. Haveria de ter mesmo um coração batendo ali dentro. Acordava no meio da noite escura, com medo e com dor. Meus irmãos diziam que era berne e que iria crescer um bicho cabeludo dentro da minha mão. E eu chorava ainda mais.

 -Tem que furar pra vazar.


 Assim diziam uns.


 -Tem que esquentar pra estourar.


Assim diziam outros.


A febre só aumentava, a dor só aumentava e minha mão só crescia com aquilo que eu não sabia o que era.


Então decidiram me levar ao famoso Tio Colombo Rivelli, farmacêutico de verdade, formado em Ouro Preto. Ele era irmão do pai de minha mãe e sua esposa era irmã do pai do meu pai. Todos em família. Eu disse que não queira ir. Tinha muito medo daquele Tio. Mas haveria de ter uma solução para minha mão.

Lá vamos nós de Jeep para Rio Espera, onde aquele Tio Colombo tinha a única Pharmácia de toda aquela região. Enquanto foram chamá-lo, ficamos esperando por ali. Eu olhava para todos aqueles armários de vidro, muito altos, cheio de frascos e variados  rótulos. Ainda não sabia ler e, mesmo que soubesse, não conseguiria ler tantas fórmulas. Havia um cheiro forte de álcool e outras substancias químicas. 

Tudo aquilo me encantou, até a chegada do meu Tio. A partir de então, fiquei ressabiada e muito amedrontada.

Meu tio olhou para mim com aquele jeito de filho de italiano esperto. Estava tranquilo.

-Venha cá, menina. Venha tomar benção seu tio!

Devagar cheguei até ele e ofereci minha mão sadia.

- A outra mão! (esbravejou ele)


Ele veio me abençoar com a mão esquerda.


Troquei minha mão e estendi meu outro braço. Ele me olhou nos olhos, me abençoou, brincou comigo e apertou minha mão com força. Um forte odor misturou com aquele de sua Pharmácia e, da minha mão, escorregou um líquido quente de pus e sangue. Não sei se chorava de alívio , de dor ou de raiva por ter sido enganada na hora da benção.


Certamente que este fato deixou muitas lembranças e eu aprendi bem a drenar abcessos durante meus plantões de cirurgia ambulatorial. 

  
Já, durante a Marcha Franciscana em 2005 realizada da cidade de Capitólio até São Roque, na nascente do Rio São Francisco, na Serra da Canastra, aprendi a costurar, com esmero, as bolhas nos nossos pés de caminhantes.

28/01/2015


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