quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

QUARTA FEIRA DE CINZAS



                                        QUARTA-FEIRA DE CINZAS


Marta chegou em casa cansada da pesada rotina de seu trabalho. Teve uma semana de muitas audiências, muitas reuniões e muitas discussões. O trabalho sempre lhe exige decisões importantes e ela, por princípio, gosta de escutar atentamente as partes envolvidas para minimizar seus erros, pondera. Tem certeza de que não é senhora dona do direito do outro. 
  
Mesmo com sua cabeça e seu corpo pesados decidiu ir para a praça nesta sexta-feira de carnaval. Belo Horizonte é toda blocos na rua. Tomou um banho, rodou a baiana e saiu de casa. Morando no bairro Santa Teresa não perderia os desfiles naquela primeira noite da grande festa de todos.

Decidiu colocar roupas leves como sempre gostou, sem os saltos do trabalho mas com os saltos da praça e das bandas carnavalescas. Em casa esquentou sua alma com mistura de refrigerantes, vodca e gelo.Vive sozinha. Seus amores são efêmeros e lhe causam incômodos. Ama seu apartamento todo dela.

 Lá se foi Marta com um vestidinho estampado, uma confortável sandália e uma pequena bolsa com o indispensável ou seja, documentos, batom e pouco dinheiro. Era tudo que ela precisaria para aderir ao samba de Noel Rosa, de Pixinguinha, à Bandeira Branca de Dalva de Oliveira, ao forró de Luiz Gonzaga e Dominguinhos.
   
Estava deveras alegre nesta noite. Sambou. Forrozeou. Desfilou abraçada com desconhecidos. Cantarolou as letras. E, de repente, quis voltar para o sossego de seu quarto. Saiu por entre foliões, caminhou a pé até sua rua e entrou em casa.

Tomou outro banho, fez uma xícara de café e saboreou o líquido quente e preto. Tentou assistir um filme já adiado outras vezes. Era inicio da madrugada. Estava com  muito sono mas seu corpo pedia travessuras. Desistiu do filme e foi pra cama. Nem dormiu. O som do carnaval enchia seu peito e as batidas dos tambores se misturavam com aquelas do seu coração.
       
Então lembrou de seu primeiro desfile na avenida. Naquele tempo ainda mantinha ligações com a cidade onde crescera e decidira que sairia na campeã Engole Ele Paletó. A fantasia ficara mais bela em seu belo corpo de mulher embora ainda com jeito de menina. O desfile fora perfeito e, certamente, sua escola ganharia o tricampeonato. Após o triunfante desfile voltara pra casa da amiga. Na manhã seguinte o telefone tocou. Era ele. Um homem conhecido recentemente e que apaixonara loucamente por ela. Queria vê-la naquela segunda-feira de carnaval. Estava num rancho próximo a Sabará e iria buscá-la naquele momento. Marta tentou recusar. Não conseguiu. 

Sebastião era um homem bem mais velho que ela. Tentava sair de um casamento. Os quatro filhos adolescentes eram sua desculpa. Agora se apegara a Marta como uma saída oportuna. E ela nem percebeu a artimanha. Caiu na rede. Era jovem demais para coisas do amor.

Fantasias ao chão, escola abandonada e lá se vai ela ao encontro daquele que prometia sua felicidade pra todo a eternidade. Não despedira de ninguém. Tinha muita vergonha daquela relação sem futuro, como diziam seus pais. Mas para Marta, aquele homem era seu grande amor. 

Viajou com ele de volta ao rancho. Suas irmãs e seus sobrinhos estavam lá. Não houve senão alegrias e muita festa. 

Naquela noite de muito amor Marta teve uma estranha sensação enquanto se entregava ao amado. Sentiu que alguma coisa acontecera no seu corpo. Sem dúvida, fora fecundada. Silenciou. Seria a mulher mais feliz do mundo e assim já se sentia.

A rotina dos dias longos lhe chamou de volta para a cidade grande. E um convite para a estreia de Maria Maria  no Palácio das Artes lhe devolveu a alegria naqueles dias de expectativa. Faltavam apenas dois dias para sua menstruação. Durante o espetáculo veio-lhe um desejo súbito e incontrolável. Queria comer uma coisa que fosse gelada e amarela, desde que não fosse sorvete.

Era a confirmação de que estava grávida. Pulou de felicidades com as Marias de Milton Nascimento e foi em busca daquilo que tanto queria seu desejo de mulher grávida. Nada contou a Sebastião. Não queria dividir aquele momento com mais ninguém, ainda. 

Passaram-se alguns dias. Marta procurou seu médico e grande amigo. A gravidez fora confirmada e tanto ela quanto o feto passavam bem. Agora era hora de contar ao namorado. E ela estava brilhante naquele encontro. Ele ouviu calado. E calado ficou até dar pressa de ir embora; alegou ter que levar os filhos ao clube. Marta ficou só com sua barriga. Chorou. 

Sebastião reaparecera na semana seguinte. Reiterou seu amor com outro convite para um jantar. Após a deliciosa refeição escolhida por Marta, ele, delicadamente, fala da gravidez naquele tempo. Seus filhos ainda exigiam muito a presença dele, sua esposa estava passando por momentos difíceis junto ao pai muito doente. Haveria outros tempos para a chegada de um filho nosso, concluiu ele.

Marta calou-se. Então falou que teria aquele filho mesmo sem ele. Sebastião aceitou sua decisão. Foi embora no meio do jantar. Era sua escolha. Ela aceitou e ali se despediram. Continuou sentada. Não tinha forças para sair do lugar. A música tomou conta, " eu sei que vou te amar, por toda minha vida eu vou te amar". Chorou de novo. Não suportaria viver sem seu amor.

Uma semana depois telefona e diz que aceitou tirar seu bebe conforme proposto por ele. Nas vésperas da Semana Santa eles viajaram até o Rio de Janeiro. O procedimento estava agendado para quinta-feira santa, numa grande clínica clandestina, naquela bela região a beira mar. Ele volta no mesmo dia e a deixa na casa de outra amiga na cidade maravilhosa. Nunca mais se viram. 

Alguns anos depois Marta ficou sabendo que Sebastião teve um enfarto fulminante. Não chorou.

Ela continua desfilando e brilhando na vida com seus quase cinquenta anos. Formou em direito e trabalhava como Promotora de Justiça junto à Vara da Infância e da Juventude. Entretanto, ainda hoje, procura no meio da multidão o rosto do filho que não teve.
    

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