Esta carta foi escrita em resposta à Carta VI.
Carthage, 20 de janeiro de 2018.
Minha amada
Como está você?
Espero encontra-la feliz e com boa saúde.
Às vezes me pergunto se ainda traz os sonhos dos nossos
tempos? Ou se ainda carrega consigo os sorrisos ingênuos de sua adolescência?
Ou se tem ainda a beleza no corpo? E se os caminhos ainda tem o perfume de suas
mãos? Por onde anda minha jovem amada dos tempos idos?
Ainda guardo comigo todas aquelas cartas do tempo em que
fora possível nosso amor. Ler você nas entrelinhas tem sido meu maior consolo.
Ainda posso ver os presentes escolhidos nas noites de natal.
Bonecas. Bonecas de pano com vestidos coloridos e cabelos trançados. Ver a
alegria em sua face carregando o embrulho das bonecas me tornava mais digno
mediante a miséria social e política do nosso país em crise.
Instigar você na leitura de Emile Zolá e discutir sobre os
amores em tempos sombrios me trouxera uma felicidade indescritível.
Como nos amamos tanto! Onde foi que deixamos de lado nossas vidas? Onde nos perdemos?
Se fecho meus olhos ainda posso ver você descendo a ladeira
para nossos encontros furtivos. Eu no meu carro, de cor meio ocre, meio rosa.
Desacelerava. Parava o tal corcel. Desligava o motor. Não perderia um só
movimento do seu corpo que tanto desejo me causava. Ficaria ali toda uma
eternidade para que não se desfizesse o encanto. E nossos encontros nas noites
da minha cidade sempre foram de tenros prazeres e de muitas conversas. E nossos
corpos diziam por nós. Saía cedo na manhã seguinte para não despertar você e,
obviamente, não ter que nada dizer. Quantas palavras queria lhe dizer...
Agora envelheci. Perdoe-me porque envelheci mais que a
cronologia dos tempos. Perdoe-me porque envelheci mais do que fora necessário.
Fui parceiro do meu envelhecimento uma vez que a covardia não me permitiu
sobreviver ao meu amor por você. Fiquei à margem da vida. Apenas observando a
passagem dos anos e dos amores.
Jamais me importei com a barba grisalha nem com os cabelos
ralos. Resignei-me ao tempo. Enamorei-me do tempo. Enchi meu tempo de nada.
Tudo foi em vão. Excesso de trabalho. Excesso de estudos e projetos. Só não
queria me deixar enamorar-se de você. Tive medo de, ao me aproximar, eu pudesse
quebrar todo o encanto que sentia por ti.
Casei uma, duas, tantas vezes. Fora necessário construir
outras de você. Todas me fizeram um homem. Apenas eu não fora um homem para
mim. Tinha um corpo de homem. Uma voz de homem e desejos de homem. Mas fora um
homem fraco.
Eu precisei das mulheres, precisei dos amores das mulheres;
precisei ouvir os sussurros dos orgasmos das mulheres. Eu precisava estar vivo
para jamais te esquecer.
Minha amada: digo-lhe que viajei pelo mundo. E, em cada
canto, procurei por você. O temor de te encontrar fazia-me vagar sem alma.
Perdia minha alma cada vez que suas lembranças arrebatavam meus pensamentos.
Então meu corpo vagava esvaziado de mim.
Não tive filhos. Não os quis. Eu me bastava. Não caberia comigo nada mais que minha solidão. Mas procuro pelas ruas os filhos que teria com você. Queria nossos filhos para lhes ensinar os passos, as palavras, o plantio e a colheita dos afetos pela vida. Queria nossos filhos para sair de dentro de mim e me ver através deles.
Não tenho casa. Não construí minha casa. Edifiquei um
castelo. Um castelo assombrado. Belo. Muito belo. Todo meu dinheiro ali foi
deposto. Teria construído nossa casa. Mas construí um palácio para que ninguém
pudesse habitá-lo. Apenas o imaginário de fora dos muros habita meu palácio.
Quantas saudades tenho de ti minha amada menina.
Agora, com o peso dos anos, meu corpo pede sossego,
aconchego e tranquilidade. Meu corpo que circula pelas ruas tentando ir ao seu
encontro. Entretanto, se vislumbro tal possibilidade, volto e me embrenho por
outros caminhos. A presença de ti me causaria todas as dores que evitei no meu
paraíso terrestre. A presença de ti me desnudaria diante de um espelho cujos
reflexos só viriam até mim.
Onde andas minha amada? Entretanto não ouso saber. Saber de
ti seria minha prisão com toda a liberdade do meu corpo. Ficaria refém dos meus
próprios desejos. Portanto não posso desejar você. Posso apenas desejar que me
desejem pois assim seria tão só o instrumento do desejo.
Estou no paraíso construído para me abrigar do inferno que
um dia ousei desejar. Ou estaria eu no inferno construído para me proteger do
paraíso que um dia ousei desejar?
Faz-se as horas. Delongam-se os dias. Envelhecem-me os anos.
Eu fico mudo temendo ainda os sofrimentos que viriam caso eu te encontrasse.
Certamente acabariam as dúvidas do meu viver. Então do que viveria eu? Se a certeza
do seu amor assolasse à minha porta eu perderia meu palácio. Perderia minha
vida para viver a sua vida. Então eu seria você. E a quem eu iria amar senão a
mim mesmo?
Oh minha amada!
A angústia do que fazer com este amor corrói todo meu velho
corpo e flagela minh’alma já muito castigada.
Ainda agora ouço os sinos da igreja onde repousam meus
pedidos de misericórdia. Posso sentir o perfume da mirra espalhada sobre os
piedosos e crédulos do Senhor.
Responda-me por favor. Poderia eu amar você sem deixar me
perder em ti?
Rogo ao meu Senhor que tenha piedade de nós.
Seu eterno apaixonado.
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