sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Desejo



O homem interrompeu seu trabalho diante do computador e olhou para o nada. Na verdade olhou para dentro de si e permaneceu por lá como se, naquele momento, pudesse reviver tudo novamente.

Era ainda muito jovem, filho de uma família numerosa, vivendo numa cidadezinha do interior. Não havia escolas nem trabalho para um rapaz que tanto sonhava com um futuro melhor do que aqueles que tiveram seus pais. Estudava pela manhã e à tarde ajudava vizinhos ou familiares em serviços pesados como carregar tijolos, guardar brita, areia, ou mesmo ajudar na massa do concreto.

Às vezes, ao deitar, sentia todo o corpo doer pelo pesado do dia. Entretanto sempre havia tempo, antes de dormir, para suas leituras preferidas, romances dos grandes escritores brasileiros. Machado de Assis era seu preferido. Leu Brás Cubas e se encantou com o amor desperdiçado. Dom Casmurro lhe trouxe Capitu que também fora amada por ele. Depois leu, voluptuosamente, “Teresa Batista, cansada de guerra” de Jorge Amado. Desde então não parou mais com suas leituras até chegar em Germinal, de Émile Zola, e A Mãe, do russo Máximo Gorki. Entendeu muitas coisas a partir de tais leituras. Obviamente fora entristecendo ao descobrir o que se passava em seus país, naqueles tempos, vivendo numa ditadura militar.

Carlos, ainda no passado, tentou retomar seu trabalho, mas a tela já se apagara e ele resolveu sair dali. Suas lembranças o deixara emocionado demais já no avançado das horas. Desligou o computador, levantou, apagou as luzes e saiu de sua sala. Nos corredores do prédio apenas o vigia. Deu-lhe boa noite e dirigiu ao pátio. O sereno havia deixado uma fina camada esbranquiçada sobre a pintura do seu carro. Entrou nele e saiu dali. Precisava pegar a rodovia para voltar para casa. Entretanto nem se dera conta de que tomara outra direção. 

Tornara-se um grande empresário em pedras para construção civil e gostava de desenhar os projetos para apresentar a seus clientes e ajudar na escolha dos produtos. Assim nem via o tempo passar. 

Mas nesta noite estava diferente. 

Parou o carro no acostamento da estrada e deu de cara com a imensa lua cheia que iluminava tudo em volta. Apesar de quase meia- noite decidira ficar ali. Encostou-se no carro, cruzou seus braços e, mais uma vez, viajou para dentro de si.

Estaria com vinte e um anos quando se apaixonou pela moça mais bonita da rua. Tentou algumas vezes se aproximar dela. Notou que ela era apenas uma menina. Mesmo assim trocaram livros e discutiram sobre estudos, trabalhos e futuro. Ela era linda. Tentou outras vezes. Mas sentia que seu corpo de homem pedia mais que palavras. Queria amor de homem e mulher. Queria sexo. E a moça, protegida pela família, não poderia dar o que ele desejava. Procurou outra. Mais madura. Ela aceitou o jogo do amor. Acabou ficando com a segunda. A menina bonita, paixão de sua juventude, ficou com as cartas e alguns livros seus.

Agora, ainda sob o sereno e sentindo o frio penetrar em seu corpo, permitiu aquecer suas lembranças com duas lágrimas que brotaram nos seus olhos. Hoje, passados tantos anos, ainda lembrava dela com o mesmo carinho daqueles tempos. Uma menina da pele clara, dos olhos esverdeados, da voz mansa.

Recentemente, a mulher em que se tornou a menina bonita voltou para perto do lugar onde viveram o amor adolescente. Carlos a viu uma única vez. Estava ainda mais bela em seu corpo maduro. Vestia roupas finas. Andava com elegância e falava com delicadeza. Demonstrava erudição nas suas palavras.

Ela sempre soube dele. E ele jamais deixou de procurar por ela. Agora que ela voltou, escreveu-lhe algumas vezes. Ele não respondera. Manteve-se impenetrável. Era o modo de Carlos lidar com aquilo que poderia lhe tirar do harmonioso contrato que fizera com a vida. Amor traz insegurança. E ele achava que estava para sempre seguro.

Lembrou de uma noite como esta em que parou o carro, quando também voltava para casa, e telefonou para ela. Falou que a lua trouxera-lhe saudades deles. Brincou com as estrelas. Falou da estrada e do amor que sempre sentiu por ela. Riram como duas crianças quando descobrem o gosto do chocolate. Convidou-o para ir se encontrar ela. Ele prometeu fazer-lhe uma visita. Não foi.

Agora, o frio cortante na entrada da madrugada lhe traz de volta à sua realidade. Foi-se o tempo. Foi-se o amor.

Carlos entrou no carro. Fez uma manobra arriscada. Viajou por muitos quilômetros e, no portão da casa dela, avisou sua chegada.

Ela o deixou entrar e o amor continuou como se jamais houvesse sido interrompido.


22/02/2018


Um comentário:

  1. Idas e vindas que tecem uma trama atemporal mas contemporânea. Parabéns poetisa.
    Quando puder, visite-me:

    https://www.recantodasletras.com.br/autores/pierrut

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