O homem interrompeu seu trabalho diante do computador e olhou para o nada. Na verdade olhou para dentro de si e permaneceu por lá como se,
naquele momento, pudesse reviver tudo novamente.
Era ainda muito jovem, filho de uma família numerosa,
vivendo numa cidadezinha do interior. Não havia escolas nem trabalho para um rapaz que tanto sonhava com um futuro melhor do que aqueles que tiveram seus pais. Estudava
pela manhã e à tarde ajudava vizinhos ou familiares em serviços pesados como
carregar tijolos, guardar brita, areia, ou mesmo ajudar na massa do concreto.
Às vezes, ao deitar, sentia todo o corpo doer pelo pesado do
dia. Entretanto sempre havia tempo, antes de dormir, para suas leituras
preferidas, romances dos grandes escritores brasileiros. Machado de
Assis era seu preferido. Leu Brás Cubas e se encantou com o amor desperdiçado. Dom Casmurro lhe trouxe Capitu que também fora amada por ele. Depois leu, voluptuosamente, “Teresa Batista, cansada
de guerra” de Jorge Amado. Desde então não parou mais com suas leituras até
chegar em Germinal, de Émile Zola, e A Mãe, do russo Máximo Gorki. Entendeu
muitas coisas a partir de tais leituras. Obviamente fora entristecendo ao descobrir o que se passava em seus país, naqueles tempos, vivendo numa ditadura
militar.
Carlos, ainda no passado, tentou retomar seu trabalho, mas a tela já se apagara
e ele resolveu sair dali. Suas lembranças o deixara emocionado demais já no
avançado das horas. Desligou o computador, levantou, apagou as luzes e saiu de
sua sala. Nos corredores do prédio apenas o vigia. Deu-lhe boa noite e dirigiu ao pátio. O sereno havia deixado uma fina camada esbranquiçada sobre a pintura
do seu carro. Entrou nele e saiu dali. Precisava pegar a rodovia para voltar para
casa. Entretanto nem se dera conta de que tomara outra direção.
Tornara-se um grande empresário em pedras para construção civil e gostava de desenhar os projetos para apresentar a seus clientes e ajudar na escolha dos produtos. Assim nem via o tempo passar.
Mas nesta noite estava diferente.
Tornara-se um grande empresário em pedras para construção civil e gostava de desenhar os projetos para apresentar a seus clientes e ajudar na escolha dos produtos. Assim nem via o tempo passar.
Mas nesta noite estava diferente.
Parou o carro
no acostamento da estrada e deu de cara com a imensa lua cheia que iluminava
tudo em volta. Apesar de quase meia- noite decidira ficar ali. Encostou-se no
carro, cruzou seus braços e, mais uma vez, viajou para dentro de si.
Estaria com vinte e um anos quando se apaixonou pela moça mais bonita da rua. Tentou algumas vezes se aproximar dela. Notou que ela era apenas uma menina. Mesmo assim trocaram livros e discutiram sobre estudos, trabalhos e futuro. Ela era linda. Tentou outras vezes. Mas sentia que seu corpo de homem pedia mais que palavras. Queria amor de homem e mulher. Queria sexo. E a moça, protegida pela família, não poderia dar o que ele desejava. Procurou outra. Mais madura. Ela aceitou o jogo do amor. Acabou ficando com a segunda. A menina bonita, paixão de sua juventude, ficou com as cartas e alguns livros seus.
Agora, ainda sob o sereno e sentindo o frio penetrar em seu corpo, permitiu aquecer suas lembranças com duas lágrimas que brotaram nos seus olhos. Hoje,
passados tantos anos, ainda lembrava dela com o mesmo carinho daqueles tempos. Uma menina da pele clara, dos olhos esverdeados, da voz mansa.
Recentemente, a mulher em que se tornou a menina bonita voltou para perto do lugar onde
viveram o amor adolescente. Carlos a viu uma única vez. Estava ainda mais bela em seu
corpo maduro. Vestia roupas finas. Andava com elegância e falava com
delicadeza. Demonstrava erudição nas suas palavras.
Ela sempre
soube dele. E ele jamais deixou de procurar por ela. Agora que ela voltou, escreveu-lhe algumas vezes. Ele não respondera. Manteve-se impenetrável.
Era o modo de Carlos lidar com aquilo que poderia lhe tirar do harmonioso
contrato que fizera com a vida. Amor traz insegurança. E ele achava que estava para sempre seguro.
Lembrou de uma noite como esta em que parou o carro, quando também voltava para casa, e telefonou para ela. Falou que a lua trouxera-lhe saudades deles. Brincou com as estrelas.
Falou da estrada e do amor que sempre sentiu por ela. Riram como duas crianças
quando descobrem o gosto do chocolate. Convidou-o para ir se encontrar ela. Ele
prometeu fazer-lhe uma visita. Não foi.
Agora, o frio cortante na entrada da madrugada lhe traz de volta
à sua realidade. Foi-se o tempo. Foi-se o amor.
Carlos entrou no carro. Fez uma manobra arriscada. Viajou por
muitos quilômetros e, no portão da casa dela, avisou sua chegada.
Ela o deixou entrar e o amor continuou como se jamais houvesse sido interrompido.
22/02/2018
Idas e vindas que tecem uma trama atemporal mas contemporânea. Parabéns poetisa.
ResponderExcluirQuando puder, visite-me:
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