sábado, 12 de janeiro de 2019

Carta de Amor XIV

Meu caro,

bom final de tarde.

Ontem o sono não foi meu companheiro. Tentei espantar todos os devaneios. Silenciei-me. Nada. O forte calor esteve presente para piorar minha insônia. Mas enfim, adormeci.

Acordei no meio da noite. Um pesadelo no qual me faltava ar. Eu estava no fundo do mar. Salvei-me e, extenuada, adormeci novamente. A seguir acordei com intensa dor de cabeça. Assim fiquei toda manhã. Corpo sem lugar. O estômago não deixou por menos: apresentou aquela queimação de muita acidez. Estive realmente mal. E logo o desânimo chegou para me acompanhar. Não queria ver ninguém. Não queria falar com ninguém. Não queria pensar. Mas,como ainda não temos o poder de comandar nosso inconsciente, alguns pensamentos chegaram e desvelaram aquilo de que eu não queria saber. O que será que teria vindo primeiro? A tal dor ou as revelações? Obviamente que permaneci sem respostas. Só me restou permanecer calada num canto.

Mas meu domingo estava iluminado. Minha família estava perto de mim e alegrava meu  dia.

Voltei ao pesadelo: como eu poderia me afogar se sou uma exímia nadadora e jamais me aventurei em mares abertos?  Era a pergunta que não me saía da cabeça ainda dolorida. Nadei mais de vinte anos por grandes distâncias.

Agora meu corpo pedia ajuda e meus pensamentos vagavam descontrolados. Envergonhada do meu estado afastei-me do convívio. E eu estava bem perto de ti. Como tenho estado há mais de um ano. Entretanto o tempo tem me mostrado que quanto mais me aproximo de você mais você se afasta de mim. Lembro que, em algumas vezes, cheguei a sentir muita raiva de tuas atitudes infantis e machistas. Relevei. Eu precisava deste amor como o ar que respiro. Precisava manter você bem longe de mim para que o encanto não quebrasse e eu continuasse amando você.

Hoje, durante todo meu mal estar, percebi que não nos conhecemos. Passaram-se os anos. Somos apenas dois desconhecidos. Percebi que lutei todo este tempo querendo eternizar aqueles doces momentos da nossa juventude.

Mas não sei quem é você. E você nem imagina quem sou eu. Não construímos nada em torno de nós. Certamente tivemos muitos amores e muitas dores. Nenhum consolou o outro. Nem soube do outro. Construímos edifícios, guardamos pedras preciosas, penduramos ouros em nossos peitos e viajamos por vários lugares deste planeta. Entretanto cada qual a seu modo e em seu mundo. 

Daqueles tempos trouxe comigo a timidez escondida no reverso de uma profissional e mãe dedicada. Trouxe comigo a tristeza no reverso de um grande sorriso estampado.  E trouxe comigo também a fragilidade escondida nos arrebatamentos. 

Digo-lhe que nosso amor me foi devastador. E só nesta manhã iluminada de domingo é que meu corpo me dá os sinais deste evento. Quase morri afogada na madrugada e na vida. 

Mas à tarde fui convocada a entrar numa piscina de dois metros quadrados. O menino não aceitou a negativa. Sugeriu que eu tirasse minhas roupas quando informei que não havia levado maiôs. Porém, docemente, atendi à convocação e entrei n'água. Brinquei como se também tivesse três anos. Nadamos grandes distâncias. Mergulhamos em grandes profundidades. Rimos. Navegamos pelos sete mares.

Quando chegamos no nosso destino percebi que eu estava refeita. Assustei-me com minha disposição. Brinquei: sendo canceriana e filha da água eu estava renascendo. 

Então foi isto! 

Eu estava nascendo de novo. E agora destituída do outro que construí para me manter viva. 

Pois bem meu caro, se eu morri de amores e de ódio(às vezes) por você, agora você me é indiferente, porque descobri que não te conheço. Não é possível haver sentimentos entre duas pessoas que não se conhecem.

Ainda bem que me restou a água.

Um abraço para esse desconhecido.

                                                              Uma desconhecida de você

Um comentário:

  1. A indiferença de um sonho do desconhecido, faz nascer e renascer de novo na companhia inocente de um fruto de dois desconhecidos na inocente fragilidade da companhia. Mas quando temos uma pessoa ao lado e viver uma realidade indiferente busco forças para me despir deste outro que para mim também se tornou um desconhecido. Segundo Shopenhauer “Nós temos sonhos; não é talvez toda vida um sonho?” Depositamos a felicidade no outro, mas nós mesmos continuamos a buscar a sobrevivência em um novo, mesmo sendo a água que sacia a sede e as braçadas que preenche este instinto.
    Outra desconhecida de você! Compartilhando outro desconhecido de mim e que ainda está comigo num pesadelo acordada.

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