segunda-feira, 29 de junho de 2020

Conto: O quê este texto está dizendo?



(Delicadezas em tempos de Coronavírus XVIII)

-“Este ano vocês aprenderão a escrever o português com todos os tipos de suas orações. Irão também conhecer alguns escritores brasileiros, em especial um deles, e irão ler suas obras. Na biblioteca tem alguns exemplares, mas vocês poderão procurar mais livros na biblioteca municipal”.

Assim se apresentou meu primeiro professor de português no Colégio Estadual da cidade de Conselheiro Lafaiete.(*)

Monteiro Lobato entrou na grande sala da minha primeira série do ginásio. Estava com onze anos. Era o ano de 1969 e o homem se preparava para pisar na lua.

O professor, um jovem entusiasta que havia acabado de formar em letras na capital, chegou ao colégio com toda sua bagagem universitária e um grande desejo em ensinar.

Pronto. Foi dada a partida para que eu me enfurnasse dentro do quarto com Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde de Sabugosa, Tia Anastácia, dona Benta, Marques de Rabicó e tantos outros. Vivia todas as emoções com se fosse mais um morador daquele sítio encantado.

Mas tinha um problema. Um grande problema. Eu não sabia falar nem escrever sobre o que havia lido. Portanto, nas provas e exames orais, minhas notas eram as piores da sala. Não conseguia nem abrir a boca.

E aquele professor não perdoava.

Na matemática eu brilhava nas equações. Adorava a exatidão dos resultados. Nada dava errado. Eu tirava as melhores notas da sala. Em casa meu irmão mais velho, que também amava os números, estava sempre a me ajudar.

Na geografia eu viajava pelo Brasil, pelos rios, pelas montanhas, pelas cidades, pelos estados e seus limítrofes. Meu avô foi caixeiro viajante e meu pai viajou com ele na adolescência. Ele sabia de tudo das cidades e dos rios. Mas eu fazia todas as minhas viagens em companhia de Narizinho e Pedrinho. Emília me dava nos nervos. Eu não era páreo para ela e sua teimosia.

Nas aulas de artes me apaixonei pela clave de sol, pelo som do lá menor e jamais me esqueci da definição de música enquanto “o som agradável aos nossos ouvidos”. Embora não tenha conseguido aprender a tocar flauta ou violão, aprendi a distinguir os sons de alguns instrumentos e sempre me interessava por conhecê-los.

Nas ciências me divertia fazendo todas as atividades em casa. Até minha mãe ajudava nas experiências com alimentos e meu pai construía instrumentos sonoros e fazia telefones sem fio para nos ensinar sobre a propagação do som.

Não conseguia aprender a história do Brasil. Achava tudo muito confuso. Nada daquelas datas me interessavam, mas decorava e tirava boas notas.

Mas o danado do português me deixava desorientada. Lia uma coisa e entendia outra. Ou lia e não entendia nada. Os sentidos das palavras entravam em mim, misturavam meus pensamentos e me deixavam sem sentidos.

Juro que tentava ser uma boa aluna naquele português. Tinha medo do professor e de suas “orações coordenadas e subordinadas”. Nada daquilo entrava na minha cabeça de onze anos. Nem as tais análises sintática e morfológica das palavras. Todas elas fugiam de mim. Parecia que eu ficava desamparada diante de tantas palavras. Meu coração disparava e meu rosto queimava de vergonha.

Eu queria mesmo era brincar no sítio do Picapau Amarelo. Entrar dentro das páginas e reinar com Narizinho, comer os deliciosos bolinhos de Tia Anastácia e nunca mais ouvir falar em orações. Orações já bastavam aquelas de todas as noites em minha casa.

Devo confessar que vivi de corpo e alma em inúmeras personagens dos tantos livros lidos a partir de então.

E foi assim que deixei as orações e as palavras e me enchi de sonhos.


29/06/2020 dia de São Pedro


(*) Professor Arlindo Lúcio da Cunha Andrade a quem dediquei meu primeiro livro (Rosa nos Tempos) e a por quem tenho uma enorme gratidão. “Desculpe se não aprendi o português, entretanto você me possibilitou sentir as leituras”.

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